22/11/2018

Contos Reais do Aniceto de Campo Mourão

 
Dona Anita Me Costurou

Tinha eu lá meus 18 anos quando vim de Portugal à hospitaleira Campo Mourão onde montamos uma lojinha que foi o início do Armarinhos Continental, na esquina da R. Harrison José Borges com Av. Irmãos Pereira,  local que hoje ali está uma farmácia.
Aos poucos passamos a conhecer as famílias mais antigas, dentre estas a dos Albuquerque. Falavam coisas assim, que eu não acreditava e soube também que a dona Anita benzia e curava males do corpo além de ser excelente parteira.
Certa manhã acordei com dores insuportáveis na altura dos rins. Doía demais, meu amigo! Estava eu  a andar meio curvado. Parecia que tinha abotoado o colarinho da camisa, no botão da cueca - rindo.
Pois foi quando me indicaram dona Anita, mas relutei um pouco. Algumas pessoas falavam: cuidado, se eu fosse você não ia lá... os filhos dela são muito bravos e coisa e tal. Não acreditei que alguma coisa pudesse me acontecer de ruim mais que a dor que me afligia.
Sempre fui homem de paz,  e caminhei a duras penas até lá. Atravessei a praça. Andei com dificuldade.  Cheguei na frente da casa de madeira, simples, perto do Museu, bati palmas e dona Anita, lá da porta, perguntou quem era eu e o que queria. 
Respondi que precisava muitíssimo falar com ela.
Calmamente veio até o portão, enxugando as mãos no avental branco e logo viu minha feição contraída de dor:
- O que você tem moço... que cara é essa?
Disse o que sentia e ela recomendou:
- Vá e me traga um carretel de linha branca e uma agulha. Olha, a agulha e a linha têm que ser virgens, sem serem usadas, entendeu?
Disse que sim e fui ao nosso Armarinhos... peguei o que ela solicitou... voltei e a dor apertava. Raapaazz achei que ia ter um treco!!
Ela mandou eu entrar na sala. Tudo ali, muito simples. Sentou no sofá e eu em pé de costas à ela. Pediu-me que eu erguesse a camisa e apontasse aonde estava a doer. Levei a mão esquerda fechada para trás e apontei com o polegar.  
Ela colocou um pedaço de pano sobre o local e foi fazendo uma costura no tecido sem tocar minha pele, sussurrando orações,  e perguntava:
- O que costuro?
- Costuras  minha dor!. Respondia eu, instruído por ela.
Fez a pergunta três vezes e, três vezes respondi tal e qual que ela me ensinou.
Garantiu que eu ficaria bom, com a "Graça de Deus", e mandou-me voltar no dia seguinte. Eram três dias seguidos, de tratamento.
Acredite ou não meu caro: sai da casa de dona Anita quase não sentindo mais nada. Ficou uma espécie de dor reflexa - de mentira - não sei se me compreendes?! 
Fui embora a andar normalmente... leve, feliz igual quando ganha pirulito, esboçando sorrisos de alegria comigo mesmo. Me senti curado, porém completei as três visitas.
Mas, meu amigo, vamos encurtar esse fato.
Eu sarei. Fiquei completamente são e muito agradecido a Deus e a dona Anita que,  durante a cura, rezou o tempo todo Em Nome do Pai.
Na realidade o que mais mexeu comigo e me emocionou, foi a firmeza e a simplicidade daquela mulher decidida, de sorriso amistoso, de ar cativante, fala suave e de um coração enorme.
Em três dias - com ela - foram-se por terra, todas ‘as maldades’ que algumas pessoas capciosas falavam dos Albuquerque. É uma família maravilhosa e disso sou testemunha.
A humildade de dona Anita foi além de tudo isso quando lhe perguntei:
- Minha senhora. Quanto tenho a lhe pagar?
Ela abanou as duas mãos no no ar, como quem diz...xôo... saí pra lá... pode ir... e falou sorrindo: 
- "Não me deve nada meu filho. Deus paga" !!
Despedi-me sem saber o que lhe dizer  ou o que fazer àquela Santa Mulher. Fiquei todo embasbacado. Me despedi e fui novo de novo. A dor sumiu!
Tempos depois, sempre que me lembrava dela, lhe levava ou mandava entregar um presentinho que eu mesmo escolhia aqui da loja, porque sei que não há dinheiro que retribua o bem que a nobre pioneira e atualizada  dona Anita me fez e, sei que fez o bem a muitas e muitas outras pessoas que, por certo, lhe são agradecidas, assim, iguais a eu”, concluiu Aniceto Jorge dos Santos, sempre sorridente.

 

Dona  Zuleika perdeu o cavalo

No princípio nossas vendas se faziam com viagens pela região inteirinha em um jipinho Willys/59, com capota de lonas e janelas de plástico, que topava qualquer estrada na poeira e na lama. Tinha motor potente e  tracionava com as quatro rodas. Tínhamos a lojinha em Campo Mourão e daqui a gente partia para onde fosse se soubesse que tivesse qualquer tipo de comércio, não importava o porte nem a distância.
Nesse dia eu quase anoiteci ali pela localidade erma de Borbônia/Corumbataí. O senhor da venda teve um dia muito ocupado e me atendeu bem de tardinha.
Fechamos negócio e estava eu a retornar ao Campo quando a certa altura da estradinha de chão duro e seco, avistei um casal à beira da estrada. A mulher acenou para eu parar.
Olhei bem... aquela senhora não me era estranha.
Parei, cumprimentei e indaguei: Boa tarde! Com certeza eu lhe conheço?
-Boa tarde... sim senhor.  Somos vizinhos. Sou a Zuleika do Antoninho (Teodoro)!!
-Nossa! E o quê estas a fazer por esses lados, a pé, minha senhora?!
-Vim fazer um parto. Esse homem foi me buscar a cavalo. Foi tudo bem. É um nenê sadio, mas agora, quando estava indo pro Campo, meu cavalo rolou nas pedras e quebrou a perna direita da frente. Não serve mais pra nada!
O senhor que estava junto à ela – eu não o conhecia  – disse que nesse caso tinha que matar o cavalo para acabar com o sofrimento do animal, mas “eu só tenho facão e fica difícil acabar com ele de facãozada”, resmungou.
Aquilo me arrepiou que cheguei a me encolher, só de pensar na judiação ao pobre animal.
Nossaa! Por amor de Deus, homem !! - exclamei pasmo.
Tenho  cá uma pistola (garrucha) de duas balas. Toma aí e faz o que deves!
Ele pegou a arma. Eu virei o rosto, debrucei no volante e tapei as orelhas com as duas mãos em concha. Ouvi dois estampidos. O som da morte, mesmo abafado, me doeu.
Pronto – disse o dono dos cavalos – agora podemos ir porque se não matasse o bicho eu ia ficar aqui até ele morrer. Faz anos que tinha e gostava muito dele. O meu cavalo já deixei na casa do amigo, pai da criança, daí eu venho buscar ele amanhã cedo. O dela levou azar. Já era!
Pensei: que gajo frio, hein?! - Mata assim, sem dó.
Ele sentou no banco de lata atrás e dona Zuleika na frente, no estofado, ao meu lado.
Rapaz. Eu fiquei tão sem noção... abalado, triste com aquilo... tanto que viemos até aqui sem trocar palavras. Aquilo ficou martelando na minha cabeça. Com muita dó no coração.
Escurecendo... lusco-fusco.
Deixei dona Zuleika na porta da sua casa, ali na rua Brasil, abaixo um pouco da avenida  Irmãos Pereira, ao lado do armazém do Chiquinho.
E o amigo, onde mora? Pula aqui para a frente!
Pode me deixar aqui. Moro na Usina. Dou um jeito e vou, né?!
Nada disso.  A noite é perigosa. Vou levar o senhor até sua casa!
Fui e voltei, mas a cabeça não estava boa e assim fiquei por um mau par de dias. 
Hoje me lembro vagamente, mas não me aflige mais. Não gosto de coisas tristes! - finalizou o bom Aniceto.
 
Gordo e Cara de bravo

Resultado de imagem para claudio silveira pinto Eu já estava quase a retornar de Roncador à tarde; me despedia de um cliente quando entrou um senhor robustão, me pareceu gordo, com uma feição de poucos amigos e uma pasta preta na mão esquerda, daquelas de doutor, que perguntou ao dono do armazém:
-       De quem é esse jeep aí fora, Miguel?
-   O amigo respondeu: é desse portuga aqui... do Aniceto!
-       E o quê ele faz por esses lados?
-       É mascate. É nosso fornecedor!
Eu ali, parado, olhava para um, para o outro - como quem assiste jogo de ping-pong - sem entender o porque daquele interrogatório... e por quê o gorducho não perguntava a mim? Fiquei intrigado.
Roncador tinha fama de gente brava, que brigava e matava por qualquer desconfiança e não tolerava estranhos, principalmente grileiros de terra e ladrões de pinheiros.
-       Onde ele mora? – perguntou o senhor fortão. 
-       Mora em Campo Mourão!
-       Eu estou indo pra lá. Estou a pé. Minha caminhonete enguiçou, Será que ele me leva?
Descruzei os braços e atravessei na conversa: sim senhor, sem problema!
Ele saiu, entrou rápido no jeep... sentou lá atrás, com a pasta no colo. 
Antes de eu entrar, me despedindo do cliente, falei:
- O senhor pode ir no banco da frente... faz favor. É mais cômodo!
Ele respondeu, seco, como quem joga truco:
-       Aqui ta bom !
Entrei, dei na partida do valente jipinho 4 x 4 e viemos embora, levantando poeira da estrada primitiva (BR-158). 
Ele não disse um ‘A’ de lá, aqui  e, nem eu. Não arrisquei (risos).
Na chegada, perto do Patinhas, perguntei onde morava. 
Ele indicou - praa láaa (à direita) - segui e mandou-me parar na frente de uma casa grande, toda murada, com letras de metal brilhante, fixas na parede:  ‘Vila Égile’.
Ele desceu e perguntou quanto era ‘o carreto' (?)
Respondi que não era nada.
Nem se despediu, nem agradeceu, virou-se, abriu o portão de ferro e foi-se  para o interior da mansão bonita, pintada de verde.
Curioso com aquele cidadão, um tanto estranho, perguntei a um amigo já na loja do Armarinhos, de quem era aquela Vila na avenida José Custódio de Oliveira com a rua Santa Catarina, e quem era Égile?
-       É do dono de Roncador, Cláudio Silveira Pinto. Não mexa com ele, senão tá ralado e, Égile, é o nome da mulher dele! Mas por quê perguntou?
-       Não... Não é nada não – balbuciei -  só curiosidade!

Sabe? - Eu já tinha ouvido falar de Cláudio Silveira Pinto, de sua fama de bravo, mas não o conhecia fisicamente. Sabia também que dona Égile Perdoncini administrava os negócios, guardava o dinheiro em casa, em sacos... dirigia caminhão Fenemê (FNM) carregado de madeira e desfilava na cidade conduzindo um carrão de passeio rabo de peixe... andava a cavalo pelos matos e serraria... contratava empregados,  conhecia tudo de bitola e classificação de madeira serrada e fazia excelentes negócios, enquanto seu Claudio viajava para vender a produção da Serraria Can Can de Roncador com escritório ali na quadra da Vila Égile. Era uma heroína e tocava piano  - concluiu nosso amigo, Aniceto Jorge dos Santos, do Armarinhos Continental de Campo Mourão.


 
Dona Anita Albuquerque e dona Zuleika Teodoro 
as melhores parteiras de Campo Mourão

Começamos em Campo Mourão
com uma lojinha e um jipinho

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