04/04/2011

Vacca e a Primeira Reportagem sobre o Peaberu


CABEZA DE VACCA E CAMPO MOURÃO












“Ensinarei o mundo a conquistar pela bondade, não pela matança”

Jurou Alvar Nuñez Cabeza de Vacca, o espanhol que, em 1527, atravessou nu e descalço as Américas do Norte e Central e que, em 1541, veio ao Brasil onde foi o primeiro europeu a contemplar, perplexo, as Cataratas do Iguaçu, e seu escrivão o primeiro a editar uma 'reportagem' sobre o Pe abe y u. Foi o segundo homem branco a passar pela região de Campo Mourão, em 1541, em direção ao Paraguay, e a utilizar o mesmo Caminho trilhado por Aleixo Garcia.

Origem
Cabeza de Vacca é o sobrenome da coragem.
É que nos idos de 1212 o camponês espanhol Martin Alhaja salvou o exército real ao descobrir uma estreita passagem nas escarpas rochosas da Serra Nevada. Assinalou o lugar com crânios ressecados de vacas. Deu certo, e os soldados conseguiram atravessar as montanhas e os reis de Castela, Aragão e Navarra venceram a batalha de Navas de Tolosa. O humilde estrategista ganhou fortuna, terra e lacaios, agraciado com o título de nobre de Duque “Cabeza de Vacca” outorgado pelo Rei, que o recebeu na corte o lhe concedeu um ducado.

A fidelidade dos de Vacca à Sua Majestade atravessou séculos, e o herdeiro Alvar Nuñez não decepcionou a linhagem. Foi aventureiro tão destemido quanto generoso.

Em 1528 viajou nu e descalço da Flórida (EEUU) até a cidade do México. Nos 18 mil quilômetros percorridos, Cabeza de Vacca respeitou índios e condenou colonizadores acostumados a maltratá-los. Como recompensa pela expedição foi mandado até a América do Sul a fim de exercer autoridade na Província do Prata (Argentina e Paraguai) e se  estabelecer na sede da governança espanhola, na capital Assunção.

Com destino ao Paraguai, de Vacca desembarcou em 1541 em Santa Catarina e dali cruzou todo o Paraná. Descreveu índios, fauna e flora da região banhada pela bacia do rio Iguaçu.
Esteve onde hoje estão os 170 mil hectares do Parque Nacional do Iguaçu, única reserva ambiental brasileira tombada pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade.
Da exuberância dos sertões e florestas do passado ficaram as Cataratas, vistas pela primeira vez  por De Vacca, em janeiro de 1542.


Assustado - Chegou mais perto e levou um susto. Quando viu as cataratas exclamou: “divinamente infernal, um privilégio vê-las, uma temeridade enfrentá-las. É tão forte a correnteza que as canoas correm com muita fúria. O rio dá uns saltos por uns penhascos enormes e a água golpeia a terra com tanta força que de muito longe se ouve o ruído”.


Arqueólogos da Universidade Federal do Paraná encontraram trechos do Peaberu dentro do Parque do Iguaçu, trilhados por de Vacca, mais precisamente numa parte da Trilha das Bananeiras, muito usada por estudiosos de borboletas.

Mas, perfeita é a descrição feita por Cabeza de Vacca: "O calmo e largo Iguaçu fica enfurecido nas proximidades das cachoeiras. As cataratas transformam o rio em brumas; de longe se enxerga o vapor da água, prenúncio da intensidade das quedas." No tempo das cheias são seis mil metros cúbicos de água por segundo, que despencam por 250 saltos, 25 do lado brasileiro e o restante em território argentino. A maior queda tem nome apropriado: Garganta do Diabo, com 75 metros de altura.

No entender do intrépido De Vacca não foi simples driblar as cataratas. A expedição era numerosa. Desde que saiu de Santa Catarina, o espanhol se fazia acompanhar por 250 arcabuzeiros (soldados com armas de fogo), balisteiros (arremessadores de pedras) e centenas de índios flecheiros, muitos deles agregados à expedição durante o percurso, graças à diplomacia do comandante. Também fizeram parte os frades  franciscanos Bernardo de Armenta e Alonso Lebrón. Acompanhavam o comandante, na qualidade de oficiais: o escrivão Pedro Hernández, o tesoureiro Felipe de Cáceres e o piloto (navegador) Antônio López.

Em cada aldeia que parava, De Vacca dava presentes aos nativos.
Resultado: não faltaram voluntários a lhe ensinar os caminhos da mata. Durante os dois meses de viagem seguiram pelo Peaberu, trilha milenar com cerca de oito palmos de largura, usada pelos nativos  nas suas andanças pela América do Sul, por toda a costa Atlântica e pelos arredores da portentosa Cordilheira dos Andes.

Melhor terra - No tempo de Cabeza de Vacca, enxames de mosquitos não interessavam. Como todo desbravador estava mais preocupado com a qualidade da terra agricultável. Em seus escritos chegou afirmar que o solo da região do Iguaçu: "é o mais fértil do mundo"O deslumbramento do espanhol com a riqueza do solo, a terra-roxa de origem basáltica e uma das mais férteis, tinha razão de ser. Até chegar à úmida floresta subtropical do Oeste paranaense, o espanhol passou a vida de deserto em deserto.

Alvar nasceu na seca região da Andaluzia, na cidade de Jerez de La Fronteira, no sul da Espanha, em 1492, mesmo ano em que Cristovão Colombo e Américo Vespúcio encontraram a América.
Aos 35 anos realizou o sonho de pisar no Novo Mundo. Foi nomeado tesoureiro da expedição de Panflido de Alvarez, um sanguinário veterano da conquista de Cuba. Desta vez deveriam ocupar a Flórida, mas fracassaram. Em combates com índios morreram 500 europeus, inclusive Alvarez.
Só De Vacca, Andrés Doranters, Alonzo de Castillo e o escravo mouro Estevan conseguiram sobreviver. Quando escaparam, iniciaram a travessia da América. Andaram descalços e pelados pelas terras desérticas do que hoje é a região do Texas, Novo México e Arizona. Foram os primeiros europeus a ver um bisão; a cruzar o Rio Grande e a encontrar tribos das nações Sioux e Zuni.

 

Nesta cruzada relatada em seu livro Naufrágios, escrito no exílio pelo próprio De Vacca, que o quarteto espanhol fugitivo: "Viveu entre escapar de uma tribo e ser aprisionado por outra". Foi assim até que um dia Castillo fez o sinal da cruz sobre índios doentes. Ficaram curados, encantados pelos espanhóis e passaram a chamar-lhes de... os filhos do sol.

 

Dali em diante uma multidão de nativos acompanhou os espanhóis e De Vacca sofreu mudanças profundas: . . 
"Abandonei pouco a pouco os pensamentos que vestem a alma de um europeu, e mais do que tudo a ideia de que o homem adquire força pelo punhal e pela adaga" . E prossegue em outro trecho: "Selvagens e animais em rituais, quando capturam um inimigo trazem-no para seu povoado e fazem com ele grandes festas e regozijo, o que dura até que ele esteja gordo, ao ponto de ser abatido. O índio tido como o mais valente começa a golpeá-lo pelos ombros. Depois bate-lhe pela espinha e em seguida dá seis golpes na cabeça. Aí chegam os meninos a atacá-lo com machadinha até fazer correr o sangue. Em seguida, as velhas pegam o corpo tombado, começam a despedaçá-lo e a cozinhá-lo em suas panelas".

Índios, como os que De Vacca conheceu e que tanto o impressionaram, não existem mais. Na América do Sul os herdeiros mais próximos vivem no Paraguai. Eles são os Mbya Guarani, apenas 14 miseráveis famílias que já perderam boa parte das tradições. Têm hábitos parecidos com os dos homens brancos, como fumar, ingerir bebidas alcoólicas, usar roupas extravagantes e enterrar os filhos junto com os brinquedos de plástico e uma cruz católica. 
". . Aqui morre muita criança de pneumonia e diarreia. É comum a diarreia com sangue. Tratamos com chá da cortiça do angico, árvore que os índios antigos chamavam de aquela que cura a dor da alma", conta, num dialeto guarani, o pajé Reinaldo, nascido e criado para ser o 'médico' da aldeia. Cresceu assistindo sua cultura minguar: "Antes, o cacique mandava, agora ninguém mais respeita cacique".

Casca cortiça do angico, comum em Campo Mourão

Um dos poucos hábitos tradicionais, mantido pelo guarany, é o de dormir em esteiras no chão; só as crianças ficam em redes chamadas ky-hói. Outra tradição que venceu o tempo é a importância das mulheres: "ouvimos nossas mulheres antes de fazer qualquer coisa", revela o pajé apelidado de Rei.

De Vacca continua sua narrativa: "Apesar de doentes e fatigados, todos chegamos a Assunção, com exceção de um que foi morto por um tigre" (onça)... esse Rio Iguaçu é muito povoado em toda a ribeira, estando ali a gente mais rica de todas essas terras. São caçadores e pescadores. Entre suas caças estão os porcos montanheses, veados, antas, faisões, perdizes e codornas".

Conforme mostra o relato de Cabeza de Vacca, as caçadas aqui têm a idade do Brasil. A diferença é que agora há menos bichos e mais formas de destruir. Foz de Iguaçu é um bom exemplo. Para construir o lago da Hidroelétrica de Itaipu foram afundados 1.300 quilômetros quadrados de floresta e, junto com ela, quase toda a fauna e flora que ali existia. O confronto entre o passado e o presente mostra que a fartura na Foz do Iguaçu relatada por Cabeza de Vaca não existe mais. Fica, ao menos, o exemplo de vida deste homem, que morreu pobre e esquecido em Sevilha, depois de ser expulso do Paraguai porque queria proibir a escravidão dos índios.


Sua biografia é tão interessante que ao lê-la, em 1940, o escritor americano Henry Miller, autor da trilogia Nexus, Sexus e Plexus, dedicou-lhe preciosas linhas: "Cabeza de Vacca nos leva a acreditar, desde o fundo de nossos corações, que um homem pode parar em seu caminho e, ao encarar a verdade, exemplificá-la através da ação."

 Naufrágio do navio de Cabeza de Vaca

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Primeira reportagem sobre o Peaberu

O escrivão Pedro Hernandes narra a primeira viagem de Cabeza de Vacca pelas trilhas do emaranhado Caminho nativo, assim:

Cabeza de Vacca, “partiu por terra (SC) no dia 18 de outubro de 1541. Em 19 dias atingiu o Paranã onde encontrou várias tribos Guaranis (Coronados e Guaráyrus) e manteve contato com os caciques Añaryry, Cipóyay e Tucãguassú. Estas tribos já cultivavam o milho, a mandioca, criavam galinhas e patos.
Dia 29 de novembro de 1541 atingiu a aldeia do cacique Tucãguassú e no dia 1º de dezembro atravessou a nascente do Yguassú, na região de Coretyba.
Dia 3 de dezembro chegou ao Tibagiba (Tibagi) onde descansou na aldeia do cacique Tapapyrassú. Neste ponto dispensou os índios que o acompanhavam desde Santa Catarina e requisitou outros. Aqui foi encontrado pelo índio Miguel, que voltava ao Brasil e foi seu guia até Assunção.
Dia 7 de dezembro, conheceu o toldo do cacique Abangoby, na altura do Rio Tacuary.
Dia 14 de dezembro, atingiu a tribo de Tucãngucyr (Paralelo 24º 30’), de onde atravessou um grande pinhal repleto de macacos (cay), aves e porcos do mato (tapyr),
Dia 30 de janeiro de 1542, a expedição cruzou o Rio Paranã (Paraná) e entrou na Província del Paraguay. Enquanto alguns homens seguiram em canoas pelo Rio Añemby, a maioria seguiu por terra pelo Peabeyu, até Assunción". relatou Hernandes.

Queda de Poder - Porém, na qualidade de  autoridade militar, logo entrou em conflito com os colonos espanhóis estabelecidos anteriormente que, chefiados pelo governador Irala, rejeitaram a sua autoridade e seus projetos de organizar a colonização do território. Foi acusado de desmandos e de esquecer de perseguir os quiméricos tesouros de que falavam as lendas indígenas, a fim de enriquecer a corte Espanhola.

Levante - Os descontentes se sublevaram em 1544 (rebelião dos comuneros) e enviaram Cabeza de Vacca à Espanha acusado de abusos de poder na repreensão dos dissidentes (como o incêndio de Assunção em 1543). O Conselho das Índias o desterrou e foi exilado em Orán, no ano de 1545. Oito anos depois foi indultado e se estabeleceu em Sevilha como Juiz, até o fim da sua vida.
Los Comuneros eram membros veteranos da comunidade espanhola, radicados na América que não mais aceitavam as ordens que vinham de além-mar, por considerarem que antiguidade era posto e direito de mando.

Aí era muito difícil um cargo de poder como a de um "adelantado" do rei de Espanha manter-se por muito tempo. Os espanhóis que já há muito estavam radicados em Buenos Ayres e Assunção dominavam o território, lutavam por ele e era em vão o esforço da Coroa Espanhola em mandar um homem de sua confiança a fim de tomar conta das províncias. Por isso estes mandatários sucumbiam pela força opositora dos compatriotas radicados nas Américas Central e do Sul.


Homenagem a Cabeza de Vaca

 
Memorial no Marco das Três Fronteiras 

Daí em diante o Caminho do Peaberu foi a rota mais utilizada pelos espanhóis, portuguese e aventureiros. Tornou-se a via mais curta e segura aos que iam da costa atlântica até o Rio Paraná/Assunção/ Peru, Cordilheira dos Andes, litoral do Oceano Pacífico e vice-versa.

(clique sobre a imagem e amplie)

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