22/03/2011

Síria em Campo Mourão: Ghazia D.Charrouf


 


Charrouf e Ghazia: "investimos tudo em Campo Mourão"

“Sai da Síria casada, mas sem marido. Demorei mais de mês no mar. O Brasil me deslumbrou. Fiz lua de mel em Maringá. Campo Mourão era diferente. Quando aqui fiquei chorava muito. Charrouf morreu jovem. Fui mãe, pai e empresária. Sofri e venci sozinha, com Alah. Todos filhos e filhas são mourãoenses. Hoje vivo feliz, na cidade de muitas amizades, que amo e vi crescer”, palavras de Ghazia Dareb.


Nigerian sob o terror da guerra

Ghazia Dareb Charrouf é natural de Nigerian (Síria). Nasceu dia 20 de janeiro de 1938. Filha de Karime e Fares Dareb Naser, sargento por 15 anos do Exército Francês. Fares trabalhou como militar por cinco anos na França e dez na Síria. “A França é que implantou modernização no Síria. Levava influência de primeiro mundo. Fundou colégios, hospitais, desenvolvimento da cultura, comércio e indústria”, explica Ghazia. A família Naser dedicava-se à agricultura. “Quando menina eu trabalhou e ajudou produzir trigo, milho, algodão, lentilha, grão de bico, uva, maçã e azeitona. Colhia ajuí (tâmara) e mushimushi (damasco), frutas nativas de lá, muito apreciadas na mundo toda”, explica Ghazia que tem três irmãs e quatro irmãos: Frandig, Fauzig, Marcília, Lutfig, Zeid, Assan e Adnan.


Educação – Quando garota brincava só com as amiguinhas. Foi educada para ajudar a mãe nos afazeres da casa e o pai na lavoura. Não completou o primeiro ano escolar. Só sabe assinar o nome. 
“Mas eu é muito esperta para fazer compras e vendas. Usa o meu inteligência que desenvolvi sozinha”, diz orgulhosa. Aos 15 anos as mocinhas sírias podem ir às festas familiares. “Só me levava nos comemorações das casamentos. Não pode ir sozinha e antes das nove.. dez horas tinha que estar já de volta, no casa”, explica. “Casar virgem é um honra para jovem síria e eu ficou assim até as dezoito anos. Você pode não acredita, mas dei o meu virgindade aqui na Brasil. - Como foi??... calma lááá brimo... eu conta depois!!.. sorrindo.


Religião – Síria é uma país Árabe. “Eu fala corretamente língua árabe, pratico o religião Deruzi, nosso Deus é Alah e nosso guia espiritual (sacerdote) é Mijelis”. Alah Kebir quer dizer Deus Grande. “Nossa livro sagrada é o Keteb Hekmi”, que só pode ser lido pra pedir graças. “Pessoas que vivem na pecado, que fuma ou bebe, é proibida de ter a livro sagrada no casa”. Ghazia ia à igreja às quintas-feiras e domingos com a família, de véu branco na cabeça. “Véu é respeito a Alah. Antes de ler a Keteb, gente beija a livro e encosta no cabeça...ergue e abaixa... assimm... para pedir bênção”, detalha Ghazia, ao gesticular o movimento. 


As senhoras usam o futah. “É uma véu grande, enrolada na pescoço... assimm...cobre cabeça e tampa rosto, em sinal de respeito”, detalha. “Aqui na Campo só tem dois famílias Deruzi. Nós do Síria e outra da Líbano”, mas não revela nomes. “Eu tenho futah, cor creme clarinha, que eu usa quando vai à Síria”, diz orgulhosa de ser Árabe.

Bronca – “Heii, escuuutaaa!!!.. O quê é esse coisa??.. A senhor não vai escrever da jeito que eu fala, né??  Faz favor corrigir e escrever na brasileiro certo... tá bom!? 
- Calllmaa... dona Gázhia. Tudo bem!! É só um temperinho... (risos)... Até aí estávamos na Síria e agora na Brasil... certo!?.. gargalhadas.


Hussein Youssef Charrouf ( Salomão) - “Meu marido veio pra cá bem antes de 1950 e trabalhava de mascate (vendedor ambulante). Passou por muitos apuros. Andava pelas fazendas e sítios a pé com três malas. Uma nas costas e duas nas mãos. Ele era um sírio forte, bonitão, parecia um príncipe. Vendia roupas”, explica. Hussein Youssef Charrouf (Salomão) é natural de Remet Hasen, onde nasceu em 30 de agosto de 1931. Filho de Sara e Youssef Charrouf. Salomão deixou a Síria para trabalhar com o tio Pedro (Hamad Dara Naser) que morava na região desde 1933. “Tio Pedro tinha loja, fazenda e rodoviária em Maringá”, conta dona Ghazia. “Eu nem sabia que o Charrouf existia até que tio Pedro foi pra Síria e me contou desse moço que ele chamava de meu filho”. Narra com carinho.


Campo Mourão – Por volta de 1950, Hussein mascateava na região e morava em Campo Mourão, proximidades onde hoje está o Bradesco. “Salomão me contava que aqui era um deserto (despovoado). Só tinha estradinhas, muita poeira e lama grudenta. A cidade era pequeninha. A maior parte das famílias morava em serrarias, na lavoura, muito longe do centro. Ele ficava nas estradas e dormia de favor ou mesmo nos matos, por muitos dias. Quase não passava ônibus e carona era difícil. Ele sofreu muito no inicio, até pelo jeito de falar. Chamavam ele de “turco” mas, nem ele e nem eu gostamos disso”, protesta Ghazia, porque a Turquia é desafeta milenar da Síria.


Assalto – “Uma vez, perto de um milharal, dois homens armados de facão tentaram roubar o Charrouf. Gritaram pra ele por as malas no chão e abrir. Meu marido pensou: se eu abaixar, eles me tacam o facão na cabeça!! 
Ele carregava um revólver 38 na cinta. Disfarçou, puxou a arma e gritou, brabo: agora vocês vem escolher as mercadorias, peguem e paguem. Ponham o dinheiro na tampa da mala e sumam senão vou matar vocês!!
Eles vieram, meio sem querer, pegaram umas calças e camisas, perguntaram quanto era. Deixaram o dinheiro na tampa da mala e sumiram no meio do milho. Ele me contava que quase morreu de medo, mas trabalhou três anos assim mesmo, indo e vindo dos matos”... rindo muito da cena, ao elogiar a coragem do então futuro marido.


Namorado – “Em 1952, tio Pedro vendeu tudo em Maringá e voltou pra Síria. Eu estava com dezesseis pra dezessete anos. Tinha acabado um noivado há dois meses. O tio perguntou: não quer ir para o Brasil?.. lá eu arrumo um noivo pra você... tenho um moço bonito lá, que é quase meu filho! - Eu respondi: eu topa... eu vai mesmo!! - Meus pais ficaram contra. 
Passou uns dias a família inteira do Charrouf, com desculpazinha de rever e cumprimentar tio Pedro, veio me conhecer. Me acharam linda e os pais dele (Salomão) disseram: casamento tá feito!!.. rindo muito. 
Quando acertaram tudo, eu estava com dezoito anos, purinha (virgem). Mandei três fotografias pro Charrouf e ele me enviou três também. Era muito lindo. Minhas amigas, com inveja, falavam: isso aí é de mentira... vai ver é um velho feio... te mandou fotos de algum filho ou sobrinho!!... igual acontece, que a gente vê falar hoje em dia, no internete... queria é que eu deixasse ele pra elas. Mas eu não é boba de acreditar nelas”, gargalhadas.


Casamento – As duas famílias e Tio Pedro começaram preparar os papeis na Síria, por procuração. “Nem eu e nem ele se conhecia ainda. Casei no papel. Eu vim junto com um primo de Salomão, Zeid Charrouf, que tinha o pai no Brasil. No dia 10 de janeiro de 1956 embarcamos no navio Behrli (Mar de Bahan - Porto do Líbano). A família toda nos acompanhou. Lembro que papai desmaiou de tristeza. Nós era bem de vida lá. Tinha todo conforto. Meu pai pensava que eu ia sofrer aqui”, recorda emocionada.

Viagem – “Depois de vinte e dois dias chegamos no Porto de Nápole (Itália) e ficamos dez dias em hotel pago pela companhia. Pegamos o navio Lydia (bandeira italiana), de quatro andares, que tinha igrejas, cinema, hospital, restaurantes, apartamentos, salões de festas e de bailes... parecia uma cidade enorme, bem grande!! – Demoramos doze dias pra chegar ao Brasil. Passamos em Portugal onde ficamos um dia, Rio de Janeiro mais um dia e desembarcamos no Porto de Santos." narrou a mocinha Gazia.

Charrouf  tenta – “No Rio de Janeiro, quando estávamos encostando no porto, lá de cima do navio reconheci o Charrouf. O primo falou: é nada!!.. mas eu tinha certeza por causa das fotos que recebi dele. Desembarcamos e o Charrouf me reconheceu também. Ficamos nove horas juntos no Rio, só conversando. Nós estava casados só no papel. Charrouf insistiu pro comandante me deixar, o que não foi permitido. Ele quis embarcar comigo, mas também impediram. Prosseguimos até Santos e ele estava já estava lá esperando a gente, brincando escondido. Deu uma de palhaço brincalhão. Demoramos achar ele”, risos.

Brasil – “De Santos fomos pra São Paulo. Comecei a ver o Brasil e me deslumbrei. Tudo muito lindo. Diferente da Síria deserta. No hotel cada um dormiu em quarto separado. Ainda não podia dormir juntos. No dia seguinte chegamos em Maringá. Fiquei na casa do tio Falhala. Expliquei que precisava casar no cartório pra poder morar sozinha com Charrouf. Meu meio-noivo e meio-marido disse: não precisa nada disso... porque já estávamos casados. Eu insisti. 
Depois de quinze dias casamos no Cartório de Jaguapitã - PR, com duas testemunhas de cada um. Isso foi dia 2 de março de 1956. 
Voltamos e nos hospedamos no Hotel Indaiá – na época o mais bonito de Maringá – e ali... foi... a nossa... lua de mel... (risos encabulados) - Era isso que senhor queria saber na começo??” - rindo muito.

Campo Mourão – “No dia 3 de março de 1956 eu cheguei com ele em Campo Mourão. Salomão já estava aqui desde antes de 1950. Nosso ranchinho foi onde era a Casa Amaral. Na esquina do Bradesco tinha a nossa Casa Síria, loja só de calçados, chique na época. Nós morava nos fundos. Três pecinhas: quartinho, cozinha e salinha. Tudo de madeira sem mata-juntas. Cheia de frestas. O assoalho era de madeira larga e dava pra ver o chão de terra, ratos e baratas lá em baixo. A sujeira era demais. Eu não vencia a poeira que estragava muito tudo, as roupas também. Pagava homem pra tirar água de poço, era serviço pesado e perigoso. 
Lavava roupa no tanque. O chuveiro de balde era pendurado numa cordinha e a privada era uma casinha de tábuas brutas, cheias de frestas, beeem lá no fundo do quintal, só que todo mundo usava. Uma nojeira. Eu nem ia lá. Tomava banho de bacia grande, feita de zinco, na cozinha. Fazia umas paredes forradas de lençol e ali me escondia pra ninguém me sondar pelos buracos”, conta dos embaraços.


Saudades – “Durante dois anos eu chorava todo dia de saudade da família e das comodidades que deixei na Síria. Aqui a casa era iluminada por velas ou lampião a querosene. Era uma fumaceira danada. Pretejava as paredes e as roupas. Os buracos das orelhas e do nariz amanheciam pretos de picumã (fuligem). Depois de quinze dias foi puxada a energia elétrica em nosso ranchinho, mas a luz era fraquinha”, retrata a década de 50.


Localização – A Casa Síria de Calçados foi a primeira deste gênero comercial em Campo Mourão. Pegava a esquina da Rua Harrison José Borges e a Avenida Capitão Índio Bandeira. “Depois da nossa loja, vinha a Casa Marques, a Relojoaria Fuchs e o Bar do Chico. Nos idos de 50... 60... tudo ali virou bazar”, onde está hoje o mini-shopping Zé Mineiro. “Os calçados o Charrouf comprava em Franca (SP) e no Rio Grande do Sul”. Depois de dez anos a Casa Síria se instalou na Estação Rodoviária da Praça Getúlio Vargas. 
A família Charrouf investiu o que ganhou em terra e loteou o Jardim Damasco, tudo em Campo Mourão.


Patrimônio – “Sempre demos ajudas para as sociedades carentes que cuidam os pobres e crianças. Doamos dez lotes pra prefeitura no Jardim Damasco e dois eles me tomaram na marra, sem indenização, para fazer uma creche, no tempo do (prefeito) Augustinho Vecchi. 
O Charrouf amava Campo Mourão. Nunca investiu nada fora daqui. Adquiriu uma chácara na saída para Goioerê e um sítio de 26 alqueires no Distrito de Água Quente (Iretama)”, próximo das Termas Jurema. 
“Todos o chamavam de Salomão e ele gostava do apelido de carinho. Visitava os amigos árabes e libaneses todas as noites, uma vez na casa de cada um. Conversavam sobre tudo e jogavam baralho (buraco) só de brincadeira. Sempre falavam bem de Campo Mourão. Charrouf me dizia que acreditava na cidade que viu crescer assim: “isso aqui um dia será um grande centro comercial, educacional e cultural”. Creio que ele não se enganou, só que a prefeitura atrapalha isso tudo porque cobra imposto muito caro e não investe nada”, pondera dona Gazhia.


Morre Charrouf  - “Meu marido morreu dia 23 de setembro de 1973, internado em São Paulo, vítima de câncer no cérebro. Era muito moço ainda, sabe? 
Quando estava construindo esse prédio (Rua São Paulo, esquina com Avenida Manoel Mendes de Camargo) ele sempre vinha dar uma olhada nas obras. Um dia Salomão estava subindo uma rampa, caiu chuva nele e ele puxou a cabeça com força pra debaixo da cobertura e bateu  violentamente o crânio numa viga de concreto. Desmaiou mas não sangrou. O doutor José Carlos Ferreira examinou e mandou ele pra Curitiba. Lá se tratou durante dois meses com o doutor Afonso, especialista em cabeça. Não deu conta e mandou o Charrouf pra São Paulo. Em um mês abriram a cabeça dele. Tinha um monte de sangue coagulado que se transformou em um tumor maligno. A operação durou oito horas. Saiu da mesa em estado de coma, proibido de receber qualquer visita. Eu sempre visitava ele. Não deixavam eu entrar, então olhava ele pelo vidro. Chamava nome dele. Mandava beijos... ele me olhava e só chorava e eu mais ainda. Fiquei dois meses em São Paulo em casa de parentes. Via ele todo dia. Minhas crianças pequenas estavam abandonadas por mim e a loja daqui também. Eu queria ele vivo de qualquer maneira. Não podia perder meu marido naquela situação. Gastei o mundo e o fundo e ainda por cima vendedores me roubavam na Casa Síria. Quase fui a falência. Depois de onze dias que voltei pra Campo Mourão, Salomão morreu”.... conta chorando... longa pausa.
“Vesti luto três anos e já faz mais de 28 anos que fiquei viúva. Tive convites pra casar, mas meus queridos são meus filhos”, diz carinhosamente dona Ghazia.

Viúva – “Eu me desgostei. Não aguentava ficar aqui. Tudo lembrava meu marido. Sentia muitas saudades da minha família. Precisava de apoio e afeto. Eu estava frágil. Vendi tudo. Acertei os negócios. 
Em 1982 fui pra Síria. Só poupei o Edifício Charrouf para não me separar de Campo Mourão”. 
Na cidade onde nasceu o marido, Ghazia construiu uma grande propriedade que serve para escola e hospital, até hoje. “Em 1987 não resisti. Voltei pra Campo Mourão, investi e terminei de construir o prédio onde meu marido bateu a cabeça. Transformei em nossa residência e salas comerciais de aluguel. Tenho ainda uma lojinha ali que a minha filha toma conta. Vivo viajando. Eu mesma, sozinha, faço compras de estoques em São Paulo”, conta Ghazia.


Família - “Casei e demorei três anos pra ficar grávida. Daí nasceram seis filhos, todos mourãoenses: Amira (casada com Camel), Samira (Dhja), Fáuzia (solteira), Sálua (falecida), Neivo (Andreia) e Ghazi (solteiro). Todos educados e preparados para enfrentar a vida. Tenho duas netas e dois netos, até agora! – Nunca mais casei. Meu casamento é com a família que adoro. Sou pai e mãe dos meus filhinhos que o Charrouf deixou pequenos e os criei com sofrimento, dificuldades, mas com muito amor e carinho, até hoje. Meus filhos nasceram todos na antiga Santa Casa de Campo Mourão, nas mãos só do doutor José Luiz Tabith”, registra Ghazia


Satisfações – “Gosto de viajar sozinha. Conheço Roma, Paris, Portugal. Visitei o Marrocos que é tão lindo. Até fizeram uma novela (Clone) boba ai, que estraga a imagem daquela gente e país tão bonito. Já estive no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Aparecida do Norte onde já paguei uma promessa e ainda devo uma”, diz compenetrada. “Minhas cores de roupas preferidas são a vermelha e azul esmeralda que combina com meus olhos”, sorri envaidecida.


Hoje – “Não posso me queixar da vida, apesar da morte, com 42 anos, do Charrouf. Eu fiquei sozinha, com pouco mais de 32 anos, lutei muito e continuo a trabalhar. Adoro Campo Mourão que tem uma gente boa e educada. Eu cresci na vida junto com Campo Mourão e devo tudo pra esta cidade e pra esse povo maravilhoso. Dou minhas caminhadas. Mantenho muitas amizades e tenho uma família muito unida e amada”, conclui sorrindo, dona Ghazia.


Saudações - “Você é muito, demais curioso Wille, então vou ensinar umas palavrinhas bem simples: Salahmaleico: Boa Tarde!... Sabesher: Bom Dia!... Massasher: Boa Noite!... Shucra: Obrigado!. E agora, eu vai simbora. Alahmaco: fica com Alah... tchau amigo!!


 
Jovem Ghazia na Síria

 
Ghaziah, filhas, neta e filho

 
Edificio Charrouf na Av M.M. Camargo X R. São Paulo

Ghazia  com os filhos em Ponta Grossa




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