27/06/2015

Fatos e Mitos de Campo Mourão - O Ermitão - 03


 


Ermitão João Paulo de Campo Mourão

Nhô Juca sempre tinha uma história ou lenda pra contar pros compadres nas tardes de chimarrão na sua tapera de talas de palmito, coberta de sapé, um capim tipo barba-de-bode que dava muito nos Campos do Mourão. O fogo era no chão entre umas pedras com uma chapa de lata por cima, onde aquentava a água numa chaleira preta toda de ferro, até o cabo e a tampa. A cuia era de purungo colhido da natureza por ali mesmo. Tinha muito de todo tamanho. Os maiores serviam pra guardar pinga de engenho e carregar água pra tomar nas viagens ou nas lidas das roças.

-  Naqueles tempos do sertão bruto, aqui pelos Campos do Mourão, morria gente matada por dentadas de onça, picada de cobra venenosa, de mosquito da maleita; até de bandos de vespa e abelha, alembrou nhô Juca, pra iniciar a prosa do dia.
- Morria muita gente também pelos grilos (roubos) de terra sem dono, né nhô Juca? Acrescentou compadre Pedrinho.
-  É sim. Mas hoje quero falar de VIDA e contar de que modo as pessoas tratavam das doenças e dos males causados pelas águas estagnadas, bichos e insetos selvagens.
Médico por essas bandas do mundão de Deus, nem pensar. 
Mas por aqui e por ali existiam curadores e benzedores, até com algumas encenações de impressionar os atacados de doenças, os quais eram sugestionados pra se curarem pela força do pensamento e da fé. Era  tão braba a reza deles que hipnotizava a gente. A pessoa ficava zureta, mas sarava!
A diferença entre estes dois guardiões da saúde dos caboclos e índios era que um tratava com plantas e outro fazia rezas sobrenaturais.
Pra cada caso, um tipo de erva ou uma oração diferente. 
O chá mais famoso era o do pau-pra-tudo (Casca-de-Anta). Dele se fazia um chá amarelado, louco de amargo. Era tomar e sarar de quase todo mal. 
Pra disenteria davam chá de folha de goiabeira e carqueja pra tiriça do fígado (hepatite).
Quando por aqui só tinha trilhas, picadas e carreadores cortando campos e matas, morava nas ruínas da Vila Rica do Espirito Santo - construída pelos jesuítas espanhóis e destruída pelos bandeirantes paulistas - um ermitão que o povo chamava de João Paulo. Ele era baixo, esqualido; vestia uma calça surrada, meia canela, amarrada na cintura com uma corda fininha de imbira; tinha barba e cabelos brancos (encardidos), creio que ele nunca tomava banho, mas não fedia. A barba quase tapava a cara dele, descia até o peito e os cabelos cobriam seus ombros. Parecia ruivo por causa da cor da terra.
Tinha um olhar vermelho penetrante, assustador e andava descalço. Parecia o 'nhanho'.
A especialidade desse homem, tido igual santo, que vivia isolado naquelas ruínas e que só aparecia pra gente quando queria, era sarar as pessoas mordidas por cobras, que existiam muitas por aqui e por toda parte, de todos os tamanhos, com nomes temidos pelos roceiros, sertanejos e caminhantes destas paragens.

- Eu nunca vi, mas falavam muito de uma cobrinha parecida com jararaca, que tinha umas asinhas e voava alto, direta, igual flecha, no pescoço das pessoas, até das que andavam a cavalo. A mordida dela matava em poucas horas. 
Depois dela vinha a terrível cascavel que avisa antes, com um guizo que tem no fim do rabo, quando vai atacar. 
A terceira mais brava e matadora é a urutu-cruzeiro preta, que tem uns traços brancos, cruzados no tampo da cabeça. 
Por último vem a coral, quase do comprimento da terrível jararaca rasteira, que tem de duas cores. A mais colorida é a venenosa, e a menos anelada e desbotada pica mas não mata.
Pois bem. Me lembro de um caso, foi quando conheci o estranho João Paulo lá na Vila Rica do Espírito Santo, pegadinha com Fênix.

 Um vizinho meu, nhô Tonico não sei das quantas, ali pelas beiras das corredeiras do refrescante Rio do Campo, estava na espreita de umas capivaras que vinham comer a sua roça de milho. Ele queria matar elas, de raiva que dava nele. Ele nem sabia que banha quente da capivara é santo remédio pra reumatismo, dores das cadeiras e nas juntas do corpo. O que ele desconhecia é o terrível carrapato dourado que dá nas capivaras e, se agarrar pra beber nosso sangue, mata a gente.  A preocupação do meu vizinho e da família era madurar e colher a roça de milho que dava farinha de biju, fubá, canjica e quirela pra comer o ano todo, tratar das galinhas e dos porcos e, ainda, vender um bom tanto.
Numa dessas tocaias, na espreita das capivaras, escondido numa moita grande, nhô Tônico sentiu umas fisgadas e dores pela barriga da perna esquerda. Se encolheu no susto da dor, mas não olhou na hora o que foi aquilo. Pensou que era formiga. Daí a coisa começou arder, doer e ele sentiu tontura. Regaçou a calça e viu dois furinhos e, de cara, soube que era picada de cobra venenosa, mas não viu que 'marca' era ela, pois demorou olhar; estava botando tento era nas capivaras que não apareceram. Com certeza os bichos danados de expertos, quando sentem o cheiro de gente não se aproximam porque sabem que animal humano mata mesmo, até sem precisão, só pelo prazer de destruir o que a natureza tenta preservar.
Manquitolando, com dor ardente na perna, nhô Tonico chegou berrando de longe: 'me acuuuda'... se achegando ao seu rancho que ficava meio perto do meu. Ele era jovem e já casado com uma morena bonita, mestiça, sinhá Nanci. Escutei a buia e fui até lá ver o acontecido. Ele contou, mostrou a perna e perguntou:
- Além de tição, corte de faca e chupão... nhô Juca conhece algum remédio pra mordida de cobra? -Senão, sei que vou morrer! 
Falou já meio atordoado, com língua grossa enchendo a boca.
-  Não sei não Tonico, mas tenho cachaça e fumo de corda. Vamos misturar, colocar aí e amarrar bem com um pano pra ver se puxa o veneno, igual carnegão de tumor da pele.
  - Foi aí que me alembrei do tal de João Paulo, que eu ouvia falar pela fama que corria por toda parte, de curador de gente picada de cobra. 
Entonces disse eu pra nhá Nanci, aperar um cavalo manso de sela, enquanto eu ia encilhar o meu pampa e tentar levar seu marido, com vida, até Vila Rica. Ela se ofereceu ir junto, muito preocupada que estava com seu amado companheiro gemendo de dor e assando de febre.

 -Nhô Tonico montou empurrado, com nossa ajuda. Ficou, em cima do cavalo, torto igual bêbado. Eu conhecia a trilha batida dos índios que ia do Campo até Jandaia e passava na Vila Rica. Saímos cedo, tipo umas seis horas e chegamos lá perto de uma lagoa preta da Vila, passava do meio-dia. Paramos,  dei uns gritos: ooooh deeee casaaa... somos de paz !!
Não demorou apareceu aquele nanico estranho, zóio alumiando, com uma vara lustrosa, meio grossa, na mão direita, apoiada de ponta no chão de uma pedra grande, que berrou esganiçado: quem vem láaa; o quê querrrr ?!
- Tenho um homem mordido de cobra aqui. Será que o senhor pode olhar a ferida? Falei alto.
O ermitão se aproximou, batia seu cajado perto do pé a cada passo que dava; parou, olhou a perna de Tonico e perguntou, com voz firme e forte, sem nunca ter visto o homem que ali estava já meio grogue:
-  Seu Antonio Batista, qual cobra lhe picou? Mas não teve resposta.
Eu fiquei encucado. Olhei pra Nanci de boca aberta. - Como ele sabe o nome inteiro do Tonico?

Foi, subiu na pedra grande perto da lagoa preta, deixou o cajado de lado e bateu palma três vezes, bem estaladas. 
Logo começaram a se arrastar e ficar em volta dele todas as 'marcas' de cobras vindas do mato e dos vãos das pedras. Ficaram por ali apoiadas nos corpos delas e cabeças erguidas, igual quando preparam o bote. Então João Paulo perguntou pras serpentes: 
- Qual de vocês que mordeu o seu Antonio... aqui? Apontou pro moribundo.

-Então uma urutu-cruzeiro abaixou a cabeça até o chão e João Paulo disse:
-  Já sei o remédio que seu Antonio precisa. Podem ir simbora! falou pras cobras que se foram, fazendo zig-zags.
Nhô Antonio nem apeou, pois não se aguentava mais. Eu e Nanci subimos nos cavalos e esperamos pelo ermitão que voltou rapidinho com um preparado não sei de que, parecia barro preto igual titica de galinha choca, com cheiro forte de colonia do brejo; passou na ferida uma porção generosa; lambuzou bem... pediu uma tira de pano da barra da saia da Nanci e amarrou firme, sem apertar muito, na panturrilha da perna esquerda do Antonio. Entregou um pote pequeno feito de argila, cheio do remédio, com tampa de madeira pra Nanci, e instruiu ela:
-  Seu Antonio vai sarar e vosmecê ponha esse remédio duas vezes por dia, de manhã e de tarde. Lave bem com creolina e sabão de cinza antes de passar, depois cubra e amarre com pano limpo, assim! E mostrou o curativo que fez.
- Quanto que é, seu João Paulo? - Perguntou ela.
- Não é nada não moça. Vão com Deus! - Deu meia volta e sumiu.
Toquei meu cavalo e puxei, pelo cabresto, o do Tonico montado, e voltamos pro Campo e a Nanci atrás. 
Chegamos dentro da boca da noite, com lua cheia que já estava no céu sem nuvem. 
Nanci mais eu conversamos bem pouca coisa pelo caminho de volta. Mais foi pelo espanto da previsão do ermitão João Paulo, que ainda disse o nome do nhô Tonico; garantiu que o quase morto vai sarar e continuar a viver, como de fato aconteceu.
Nhô Tonico continuou nas lidas da roça, multiplicou de recursos a cada novo ano. Esqueceu as capivaras. Fez casa boa e, com Nanci, tiveram dois filhos trabalhadores e duas filhas prendadas que vi nascerem e crescerem num lar de felicidade e prosperidade. 


 
Hoje, passados mais de 20 anos, seu Antonio Batista - o amigo Tonico - é um dos fazendeiros mais ricos da região de Campo Mourão, lugar lindo que também cresceu e hoje tem até posto de saúde, médico de cidade grande e soro contra veneno de cobra. 
A Vila Rica ganhou o nome de Fênix (ave que ressurgiu das cinzas) e o 'santo' João Paulo desapareceu, concluiu nhô Juca, com cara de sono... piscando 'duro'.
-Já anoiteceu! Vo me ajeitá e dormi... 
-Boa noite e témanhã!
 
Coments on Face

Cida Freitas: É, não dá para duvidar. Quando eu era criança e vivia na zona rural ouvia muitas histórias parecidas com essa, especialmente de benzimentos.

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