Heitor Villa Lobos - As Bachianas brasileiras
Estudos – “Tivemos uma infância muito boa, mas as escolas rurais ficavam longe da fazenda. Aprendi o básico em casa, com um médico francês que passou a morar conosco até o fim da sua vida. Em 1940 fiz o exame de admissão e entrei no ginásio de Porto União (SC). Fiz o curso científico no Colégio Novo Ateneu e em 1951 terminei Engenharia Civil em Curitiba, quando fui convidado pelo doutor José Vicente, e ingressei no Departamento de Terras, Geografia e Colonização do Estado do Paraná, onde trabalhei em vários setores até meados de 1979, aposentei e, agora, residimos em Curitiba”, relata.
Pacificador – “Sou calmo e de prosa mansa. A minha missão foi trabalhar em grandes regiões de terra devoluta onde existiam conflitos pela posse entre posseiros, grileiros e donos legítimos das áreas. Eu era realmente um pacificador. Sempre agi dentro da lei e de forma correta, apesar da enorme corrupção da época, principalmente dos funcionários nos quais o governador Moysés Lupion depositava confiança. Essa falta de seriedade é que gerava as brigas e mortes porque funcionários irresponsáveis escondiam os documentos e depois cobravam importâncias absurdas pelas buscas, enquanto que o título de propriedade da terra custava uma pequena importância, expedido pelo governo desde que respeitadas as exigências que o futuro proprietário tinha que obedecer, como por exemplo: provar que estava na terra com benfeitorias realizadas. A minha função era fiscalizar estas posses, acabar com as falcatruas e defender os direitos de quem realmente os tinha”, explica Geraldo.
Devolutas – “Na década de 50 a terra do Norte do Paraná, excelente para café, começou a valorizar. O preço subiu astronomicamente e gente do mundo inteiro vinha em busca da terra roxa. Quando entrei, em julho de 1951, os conflitos estavam no auge. O Departamento de Terras era o que mais tinha influência política e foi bastante usado para fins eleitoreiros. Havia muita corrupção no meio por causa das tais barganhas e negociatas de terra”, revela Geraldo.
Campo Mourão – “No dia 18 de julho de 1952 assumi a 8ª Inspetoria de Terras de Campo Mourão que abrangia a enorme região entre Pitanga, os rios Ivaí, Piquiri e Paraná. Era muita imensa para um só cuidar. Não existia estradas e meios de ligação. Estava conturbada e havia violência exacerbada. Poucos trechos davam passagem a jipes e a maioria se fazia a cavalo ou a pé. Em muitas ocasiões éramos recebidos à bala. Nunca andei armado. Sou avesso à violência. A situação era terrível. Passei apuros, fome, dormia mal, mas tinha que encarar e resolver. Hoje esta região tem mais de sessenta e cinco municípios. Em 1952 houve o desmembramento de Peabiru”, narra Geraldo.
Violência - “Fui enviado a Campo Mourão porque o meu antecessor foi baleado por causa de terra. Ele estava hospitalizado em Curitiba. Eu não sabia exatamente qual era o meu serviço ou como era Campo Mourão e desconhecia os perigos que iria enfrentar. Mas cheguei e toquei o barco sem medo. À noite lia os processos e fui aprendendo. Nessa época o governador Bento Munhoz da Rocha Neto criou a Delegacia Especial de Terras com sede em Campo Mourão onde se concentrava o maior conflito. O delegado era Alberto Abujanra, com o qual acabei me desentendo em 1952, porque ele extrapolava a função. Meu trabalho era encontrar os posseiros e legalizar a ocupação da terra, titular, entregar o documento e registrar no Cartório de Imóveis. Do outro lado estavam os grileiros que lutavam para tomar a terra dos posseiros e nesse meio estava eu como mediador dos conflitos. Uma espécie de juiz sem tribunal, que tinha que decidir sozinho o certo e o errado numa missão espinhosa porque a gente sofria muita pressão de políticos, daí as constantes ameaças, de morte ou de perder o emprego, que eu recebia de todo lado. Porém, com medo ou sem medo, tinha que resolver”, comenta Geraldo.
Entrevero – “Recordo-me que tivemos que resolver uma encrenca no Barreirão do Oeste (Boa Esperança). Fomos em dois jipes. O delegado levou os jagunços dele. Turma da pesada mesmo. Na ida, no meio do carreador, que não cabia dois jipes lado a lado, paramos para dar passagem a um outro que vinha em sentido contrário. As pessoas procediam do local de conflito. Um homem estava estirado no assoalho, ferido à bala, para ser socorrido em Campo Mourão. Chegando perto da clareira avistamos uns seis ranchinhos de pau-a-pique e ouvimos tiros. A polícia saltou do jipe e atirava para o alto e dava gritos. Apavorei. Pulei e me escondi atrás de um toco de árvore. Depois nos identificamos. O tiroteio cessou. A jagunçada saiu do mato e veio. Começamos a conversar. Um dos ranchos servia comida e tinha um morto jogado em um canto, cheio de sangue no chão. Pernoitamos e dormimos em tarimbas de paus, e o defunto ali. À noite o tiroteio continuou. No dia seguinte o delegado abriu inquérito e tomou vários depoimentos. Na volta pensei e fiz planos de retornar à Curitiba. Aquela encrenca me assustou. Não sabia que a região era assim tão perigosa. Mas, com vergonha de eu mesmo, permaneci em Campo Mourão”, decidiu Geraldo.
Sertões - “Acompanhado de um colega engenheiro fizemos vistorias de rancho em rancho nos lotes ocupados na vasta região. Trechos em jipe e a maioria a pé ou a cavalo, por picadas dos agrimensores que mediam a terra. Um posseiro indicava o outro e assim fomos. Margeamos a Estrada Boiadeira que era um carreiro, passamos por Tuneira do Oeste, Araruna, Pinhalzinho (Janiópolis) e terminamos a primeira inspeção em Juranda onde havia uma serraria e mais nada. Os maiores povoados não tinham mais que dez ou vinte ranchos de pau”, registra.
O Caminho do Peaberu – “A estradinha de Juranda a Mamborê foi aberta pelos paraguaios que vinham retirar madeira e erva-mate. Utilizavam a antiga trilha do Caminho do Peaberu, que cortava toda a região e por ele eu passei também. Era um trecho estreito e atravessava o Porto Vera do Rio Piquiri. Esse Caminho, também conhecido como de São Thomé é o mesmo que partia da Capitania de São Vicente, atravessava os estados de São Paulo e Paraná e seguia até o Pacífico, nos Andes”, descreve com conhecimento de causa, Geraldo.
"O Piquiri parece um rio calmo, mas era arriscado atravesar pela água com o cavalo. Estive na beira. Não atravessei porque o lado delá não era minha jurisdição. Hoje Porto Vera é moderno e tem excelente ponte"
Guarda-costa estranho – “Uma noite o inspetor de Cascavel, João Karochinski passava por Campo Mourão e viu meu escritório com a luz acesa. Entrou e logo atrás dele um homem de revólver em punho. Me olhava e observava o visitante. Fiz sinal ao pistoleiro e ele se retirou. Deixei o João sentado e fui ao encalço do homem. O abordei e perguntei o que se passava. Ele respondeu-me: cuidando do sinhô! Disse que toda noite ficava de baixo da árvore, ali por onde está a Cometa, quase defronte a Inspetoria. Indaguei: a mando de quem? Ele apenas falou para eu ficar calmo, porque nada vai acontecer ao sinhô! De fato toda noite quando ia trabalhar, via ele sentado ao pé da árvore”, conta Geraldo.
Norte – “O Interventor Manoel Ribas sabia da riqueza da terra roxa do Norte do Paraná e distribuía títulos aos paulistas e mineiros, enquanto paranaenses só ocupavam cargos públicos e os nordestinos faziam a mão-de-obra. Mas, os beneficiados não iam porque não existia nada. Só mata, sem estradas. Os posseiros foram entrando e tomando conta da terra. A Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, bem estruturada, abria estradas e vendia lotes organizadamente. Com o progresso os donos dos títulos começaram a aparecer e reclamar a terra. Foi a maior guerra que já vi, em Porecatu principalmente. Em 1953 fui mandado para Londrina com a finalidade de resolver aquele conflito terrível. Eu utilizava veículos do Estado, com chapa branca. Só que para entrar no sertão tinha que retirar as placas para não ser morto. Chegava, conversava com os posseiros e só depois me identificava e dizia da minha missão. Os posseiros, tipo os sem - terra de hoje, sofriam com as ações da polícia e por isso odiavam carros oficiais. A minha missão no Norte do Paraná era retirar os intrusos, selecionar as famílias e encaminhá-las para assentamentos legais, na região de Campo Mourão e Pitanga, onde havia quantidade maior de terra devoluta. Essa peãozada era transportada em caminhões fretados. Tratava-se de um povo muito carente, morava e se alimentava mal. Morriam muitos à mingua, principalmente crianças picadas de mosquitos e subnutridas”, narra triste.
Cascavel – “Depois de Londrina, quando assumiu o governador Ney Braga fui enviado para apaziguar os conflitos na região de Cascavel e chefiar a Inspetoria de Terras. A coisa estava tão feia lá, roubaram tanto, que a primeira visita do Ney foi àquela região. Junto comigo, de avião, foi o Coronel Lapa, Delegado de Polícia com ordens de prisões. Quando lá chegamos todas as repartições públicas estavam abandonadas e os titulares foragidos. Não tinha ninguém para transmitir cargos e prestar informações. Tivemos que reorganizar tudo e fazer as coisas funcionarem corretamente”, explica.
Júri – “Quando assumi Campo Mourão pela primeira vez, soube da morte trágica do Elias Xavier do Rego, baleado pelo Gaspar Negreiros, em frente da Inspetoria. Houve o júri e eu estava no conselho de sentença. O Jaci era o réu, filho do Gaspar e jurava que não matou o Elias. Foi, talvez, o júri mais famoso de Campo Mourão e o rapaz foi absolvido, fato que agitou a cidade e revoltou a maioria”, recorda.
Namoro – “Permaneci em Londrina até 1956. Depois em Pitanga até 1957, trabalhei em Paranavaí... Cascavel e retornei a Campo Mourão em fevereiro de 1961 onde permaneci até junho de 1971. Conheci a Walkyria (foto) em 1957 em Ponta Grossa na festa de formatura de uma das minhas irmãs, que morava com a família da minha esposa”, revela Geraldo.
“Nosso namoro foi meio conturbado - conta Walkyria – porque as famílias se opunham, o Geraldo eram mais velho, mimado e tinha fama de namorador. Mesmo assim nos apaixonamos. Foi tudo muito rápido entre namoro, noivado e o casamento, cerca de 25 dias de contato. Eu morava no Rio de Janeiro com minha mãe e as irmãs”, explica Walkyria.
“Quando voltei a Campo Mourão, em 1961 já estávamos casados e a Inspetoria bagunçada de novo. Nossa casa era na Rua Santa Catarina, esquina com a Avenida Irmãos Pereira, fazia fundo com o escritório que ficava bem atrás do terreno onde hoje é a Sanepar”, localiza Geraldo. “Minha missão sempre foi resolver situações críticas o que me valeu uma menção honrosa, com o título de apaziguador, que me foi conferida pelo governador Ney Braga. Felizmente, depois que assumi Campo Mourão, a partir de 1961 não morreu mais ninguém por briga de terra. Nunca fui difamado e nem notícia ruim na imprensa, como foram tantos outros. Teve dia de atender cerca de duzentas pessoas. Nunca ninguém veio e foi embora sem uma solução no mesmo dia”, conta satisfeito.
Walkyria Richi Gaertner nasceu em Ponta Grossa (PR), em 17 de novembro de 1937. Filha de Carmelita Richi e Dario Gaertner de família tradicional de Curitiba. Casou em Ponta Grossa com Geraldo Boz e têm três filhos: Geraldo Júnior, Cristina e Cláudia, fotografados em Campo Mourão (veja abaixo). “Morei em Campo Mourão de 1961 a 1971. Era um verdadeiro faroeste, mas gostei e gosto muito a cidade. Creio, que os melhores dias de nossas vidas passamos ali. Hoje moramos em Curitiba, com muita saudade de Campo Mourão. Sou amante da música. Gosto de cantar e tocar instrumentos musicais. Toda minha família é de músicos, eu e minhas irmãs. Gostamos muito de dançar, a começar pelo meu pai e a mãe que nos incentivavam”, conta Walkyria.
Casamento – “Nos casamos dia 30 de dezembro de 1957, em Ponta Grossa. Antes o Geraldo me propôs fugirmos. Fiquei tentada, mas não aceitei para não magoarmos nossas famílias. Estávamos super apaixonados. O par de alianças ele mandou fazer em Londrina onde moramos depois. Tanto em Londrina como em Campo Mourão eu gostava muito daquele movimento, daquela gente indo e vindo, muita poeira, muita sujeira, muito trabalho, tudo diferente do Rio de Janeiro. Chegamos a Campo Mourão num dia de tempestade, ventania forte e eu toda assustada. Nos hospedamos no Hotel Paraná onde conheci a dona Norma e a Anita, que me contaram como era a cidade. Eu estava dando mamadeira para o Júnior e me disseram: nessa cama onde você está sentada, mataram um por causa de terra. Dei um pulo. Fiquei toda medrosa. Depois mudamos em uma casa de madeira”, relembra Walkyria.
Meu filho e filhas
Dinâmica – “Apesar de dona-de-casa nunca gostei de ficar parada. O Geraldo viajava muito por causa do trabalho. Comecei a preparar um menino para exame de admissão ao ginásio e logo formei uma escolinha em casa. Não terminei a faculdade, mas gosto de lecionar. O professor Ephigênio José Carneiro era o diretor proprietário do Ginásio de Campo Mourão, soube do meu trabalho e convidou-me para lecionar. A diretora da Escola Normal João d’Oliveira Gomes, professora Hilda Dessoti, também. Depois trabalhei com o professor Egydio Martello, quando fundaram o Colégio Estadual de Campo Mourão. Nestas escolas organizamos os corais, orfeãos: Villa Lobos e Ary Barroso.
Coral Orfeão Vila Lobos
Eram corais rivais, mas regidos por uma só maestrina, que era eu. A convite do padre Dionísio fui presidente da Associação de Proteção à Maternidade e à Infância - APMI e criamos o Coral da Igreja de São José, na época introduzimos musicas da Jovem Guarda e foi um sucesso. A igreja lotava e depois da missa o povo todo ficava. O padre retornava e continuávamos cantando. Era muito lindo”, conta feliz.
O Hino – “Quando da inauguração da rodoviária na Praça Getulio Vargas, construída pelo prefeito Milton Luiz Pereira e inaugurada pelo prefeito substituto Rosalino Salvadori, nos pediram um hino próprio para homenagear as autoridades e o Município Modelo. Fiz a partitura musical, o professor Martello compôs a letra, cantamos, foi uma maravilha. Depois começou a ser adotado. Em todas as cerimônias o coral e a banda eram convidados para cantar aquele hino: em jogos, feiras, aniversários da cidade, semana da pátria, etc e para minha surpresa e alegria, se transformou oficialmente no Hino de Campo Mourão. Tenho uma saudade louca de Campo Mourão. Hoje vivemos em paz e felizes ao lado dos filhos, aqui em Curitiba, certos de que contribuímos pela grandeza de Campo Mourão”, registra Walkyria ao concluir, ao lado do esposo Geraldo Boz, estes depoimentos ao Projeto Raízes editado pela Tribuna.
Meus filhos casaram e vivemos em paz, em Curitiba
Edição Wille Bathke Júnior
Reportagem Eleano Alves
Curitiba
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