Tá tudo Errado...
Origens - “Vai me desculpando aí. Sofri duas ameaças de derrame. Não me lembro bem das coisas, mas a Anália me ajuda lembrar. Pode perguntar que a gente vai responder tudo”, entusiasma-se Quirino. Com forte sotaque caboclo, enquanto a esposa, Anália Maria Barbosa, conta que nasceu dia 13 de março de 1924, em Queimadas (Ortigueira – PR). “Minha mãe, Placedina Maria da Silva, era filha de índios do Tibagi. Meu pai, Marcos Mathias da Costa, veio de Portugal, pequeno... gostou muito do Brasil e ficou”, explica dona Anália. - Quirino retoma à conversa: “meus pais eram paulistas”. Ele de Avaré e ela de Piraju. Casaram, tiveram 18 filhos e 16 se criaram: Antonio, as gêmeas Umbilina e Sebastiana, além de Quirino, os outros nasceram em Campo Mourão. A Família Ornellas Barbosa era famosa em São Paulo pela participação na política. “Mexiam com gado, lavoura e mandavam na cidade. Por lá se falava muito nos sertões do Tibagi e nos Campos do Mourão. Antes, meu tio Jozé Luis Pereira, irmão de minha mãe, já andava por aqui”, revela.
Índios - Joaquim Ornellas, aventureiro, guiado pelos índios, casado e pai de 14 filhos, pegou tudo e saiu de São Paulo. “Meu pai era amansador de índios. Tinha muitos toldos (casas de índios) ali na Pitanga. Aqui já não tinha mais bugres (índios mansos), só os de passagem pela estradinha chamada Peaberu, que era o caminho deles”, recorda Quirino. “Eram gente muito boa, mas não se misturava com os brancos. Só não podia tirar eles do sério e nem matar nenhum. Eles eram muito vingativos. Quando menino e rapaz ainda, fui puxador de tropa que ia vender e comprar mercadorias em Guarapuava. Quando passava na Pitanga, cansei de vender coisas pros índios, lá”, registra.
Tropeiro – “O que mais a gente levava nos cargueiros era rapadura, café e arroz limpo. O milho era pra alimentar os cavalos, as mulas de carga ou as porcadas que a gente levava, tocadas a pé daqui até Guarapuava, pelo meio do mato, com os porcos, cachorros e os camaradas que depois a gente pagava um pouco com capado (porco gordo) e outra parte em dinheiro”. Os cargueiros iam nos lombos das mulas. “As pessoas mais jovens não entendem como a gente fazia essas viagens pelos matos, levando taquarada no peito e ramada na cara... se arranhando nos inhapindás (espinhos unha de gato). Eles querem saber como os porcos, os animais de carga e montaria não fugiam”, observa.
Pontos - “Já ouviu falar em trempe e guaiaca? – Como eu tava te falando das tropas, tinha os pontos certos de parada daqui até Guarapuava. Parava quando começava escurecer. Só que no meio do mato escurece mais cedo. As árvores tampam o sol quando ele tá caindo (poente). Nesses pontos sempre tinha água por perto onde os animais bebiam e a gente se lavava mal-e-mal. Tirava o suor e o grosso da poeira da viagem”...(risos). “Como já te disse, tinha um cargueiro pra cada coisa. Um só do nosso alimento. A trempe era três pernas de ferro, unida em cima, abria embaixo e um gancho no centro... a gente armava... pendurava o caldeirão de ferro... enchia de comida e tascava fogo debaixo, até cozinhar bem. Café, farinha de milho, feijão, arroz e carne seca, era a base do nosso alimento. Não tinha esse negócio de tomar só um café preto. Todas as refeições valiam por um almoço. Cedo, com café tropeiro, era virado de feijão com farinha de milho. Certo?”, ri satisfeito por ser compreendido.
Cargueiro – “Um cargueiro de mercadoria era três alqueires de colheita. Pesa 120 quilos de produto, transportado por mula, com 60 quilos de cada lado do animal para dar o balanço (equilíbrio). Cavalo não se usava nesse transporte porque é mais fraco e só servia pra montar e puxar carroça, mesmo. Quando fazia muitos cargueiros ou cana de açúcar, aí transportava em carro de bois”, explica.
Mini banco - O Senhor esqueceu da guaiaca....“Esqueci nada. A guaiaca, eu guardo até hoje”. Dona Anália traz e ele mostra uma cinta larga de couro bege, com divisões, fivelinhas e duas fivelas grandes de enfeite nas duas pontas. Tem uma tira de couro com furos marcados e uma fivela menor, por dentro, que é o fecho de segurança. “Aqui (bolsa menor) guardava os níquel (moedas). Aqui (bolsa maior) os documentos, e aqui, ó, é a capa do segurança... meu revólver 38”... (sorri). “A peixeira (faca) ou o punhal (lâmina de aço sem fio, pontiaguda e estreita) ia atravessada nas costas, por dentro da guaiaca, igual bainha”. Agora mostra a parte que vai por cima do cinto que segura a calça. “Veja bem”. Abre a guaiaca em duas, que parece um comprido sanduíche sem recheio. “Nesse meio todo dela se guardava o dinheiro de papel”. Fecha. Aperta os colchetes de pressão. “O dinheiro ia de boca prá baixo e não caia. Carreguei muito dinheiro nessa guaiaca de estimação”, diz orgulhoso, seu Quirino, ao se referir aos “muitos negócios bons” que fazia.
Família – Anália e Quirino casaram na residência de Carlina Balles, na localidade conhecida como Barras (Campo Mourão), “era um dos lugares onde o padre parava quando vinha de tempos em tempos de Guarapuava”. Nasceram 11 filhos: Joaquim (casou com Terezinha Martins), Ana Maria (Paulo Kubichek), José - falecido (Marli Goetz), Getúlio (Ivone Krüger), Maria (Valdemar da Silva), João Dornelles (Rosa Maria Sanches), Jair (Marina de Freitas), Albertina (Luiz Carlos Romeira), Jacinto (Giovana Donata), Castorina (Marcos Herardt) e Joel (Neide Cunha). “Temos 37 netos e 25 bisnetos e tá vindo mais uns por aí”, contabiliza seu Quirino, orgulhoso da família que tem.
O Pala Branca - “Com o temido Pala Branca, eu trocava meio porco todo ano. Uma vez eu matava e outra, ele. Esse homem virou lenda pela fama que tinha de bandido matador. Ele era bom, direito, mas não levava desaforo pra casa. Eu levava a metade do capado pra ele, lá no Pensamento, e no outro ano ele trazia aqui no Campo. Andava sempre armado e vestia um pala (capa de cavaleiro) meio branco, marronzeado pela poeira, Esse pala protegia da chuva e da poeira nas viagens. Estava sempre bem armado e a roupa coberta sempre limpa. O cavalo e o cachorro eram ensinados. No fim, de medo dele, fizeram uma tocaia (emboscada) e mataram ele nos tiros, numa estradinha que ia das Barras pra Juranda, no rumo do Pensamento, onde morava com a família. Ele era nosso amigo, da família, e do pai da Cidália Guimarães (Araújo), que tinha uma venda na Juranda. Quem conhecia bem ele era o seu Bonifácio, pai do professor Ephigênio (José Carneiro), desde lá de Santa Catarina. Parece que de Caçador”, tenta lembrar seu Quirino.
Guerras - “Eu vi dois movimentos de guerra por aqui. Até escutava os tiros de canhão lá no Mamborê”. “E é verdade, eu também escutava e ficava com medo de acontecer alguma coisa com a minha piazada!!.. confirma, rapidamente, dona Anália. Quirino diz que testemunhou as passagens de tropas de soldados e guerrilheiros, em 1924 e 1930, pela região de Campo Mourão. A primeira na Revolução Paulista, que tinha o tenente Cabanas no comando, que foi derrotado pelas tropas federais. “Depois passou aqui os comunistas do Carlos Prestes – Coluna Prestes - que queria tomar o governo do Brasil. Logo atrás, com diferença de menos de um dia, vinha o exército do presidente (ditador) Getúlio Vargas, na perseguição. Nessa época quem governava o Paraná era o Interventor Manoel Ribas (Zé do Facão), nomeado pelo Getúlio Dorneles Vargas. Meu pai serviu o exército, nesse tempo, como estafeta (mensageiro) a cavalo. Só viajava no galope prá entregar as cartas com rapidez”, recorda.
Nada – “Até 1940 aqui não tinha quase nada construído. Os moradores eram longe uns dos outros. Era tudo carreador. Nem igreja e escola tinha. A cidade começou uma vilinha (vilarejo) e hoje tá grande e bonita. Mas foi tudo devagar. Eu nasci uns seis anos depois que meu pai veio prá cá.. Estudei o primário em casa, com a professora Maria Ermenegilda Salles, que meu pai contratou para ensinar os filhos. Lá em casa iam estudar também, os filhos dos vizinhos. Me lembro bem dos do João Keche, que fazia divisa com nossa terra”, recorda seu Quirino, que atualmente mora em um sobrado – única propriedade - com sua esposa, ambos aposentados com salário mínimo, estimados, sempre visitados pelos amigos e parentes. “Vi família por família e casa por casa se estabelecer aqui”, registra Quirino.
Cadê as árvores seu moço? - “Lá no Mamborê matei muito tateto (porco do mato), veado e tigres (onças). O tateto era perigoso. Eles andavam em vara (bando) e quando se sentiam acuados, formavam uma roda em volta do cachorro ou da gente e se não subisse num pau ou fugisse, eles estraçalhavam. Tinham presas e dentes grandes que batiam um no outro e por isso eram chamados de queixada. No Mamborê requeri mais de 300 alqueires de terra devoluta e pinhal. Os Sguário entraram lá, com serraria, puseram os jagunços (vigias) e disseram que a terra era deles. Eu fiquei só com um pouco. Depois vendi tudo e voltei pro Campo. Terra naquele tempo, ninguém queria. Só tinham interesse nos pinheiros. Nem prás outras madeiras de lei os serradores ligavam. Em trinta anos acabaram com tudo. Só não serraram os palmitos e palmeiras porque ninguém compra”, critica. “Tinha uma lei na época, que dizia: cada árvore derrubada tem que ser plantada duas sementes (mudas) da mesma espécie. Alguém plantou?”, questiona. "Ir ou vir de Maringá era uma jornada de dias, ou de lama ou de pó, tinha que ter coragem de entrar", concluiu pensativo.
“Nasci e me criei aqui. Podia ser dono de Campo Mourão, mas só tenho isso aqui (mostra o apartamento). O venerando, Joaquim Ornellas Barbosa, meu pai, foi o primeiro Delegado de Polícia de Campo Mourão, nomeado pelo governo, mas nunca prendeu e nem matou ninguém. Naquele tempo as pessoas eram mais honradas, se respeitavam e nem precisava de autoridade" observa Quirino Dornelles Barbosa.
Pioneiros de Campo Mourão
Tudo errado - “Nasci ali, na beira do Rio do Campo, no dia 05 de março de 1916”, narra Quirino Dornelles Barbosa, filho de Joaquim Ornellas Barbosa e Messias Theodora de Jesus. “As famílias antigas acabaram tendo sobrenomes errados porque o escrivão anotava do jeito que os pais falavam acaboclados. Era difícil mulher que tinha nome de marido e comum filhos com o sobrenome da mãe”. Lembra que existia uma ordem do governo, “que proibia os cartorários de registrar crianças com nome estrangeiro. A lei era abrasileirar todo mundo que nascia aqui”, explica seu Quirino.
Veja que na certidão de casamento dos meus pais está Ornelas, e me registraram Dorneles, e no título de eleitor do tio José, está com 'z'
Origens - “Vai me desculpando aí. Sofri duas ameaças de derrame. Não me lembro bem das coisas, mas a Anália me ajuda lembrar. Pode perguntar que a gente vai responder tudo”, entusiasma-se Quirino. Com forte sotaque caboclo, enquanto a esposa, Anália Maria Barbosa, conta que nasceu dia 13 de março de 1924, em Queimadas (Ortigueira – PR). “Minha mãe, Placedina Maria da Silva, era filha de índios do Tibagi. Meu pai, Marcos Mathias da Costa, veio de Portugal, pequeno... gostou muito do Brasil e ficou”, explica dona Anália. - Quirino retoma à conversa: “meus pais eram paulistas”. Ele de Avaré e ela de Piraju. Casaram, tiveram 18 filhos e 16 se criaram: Antonio, as gêmeas Umbilina e Sebastiana, além de Quirino, os outros nasceram em Campo Mourão. A Família Ornellas Barbosa era famosa em São Paulo pela participação na política. “Mexiam com gado, lavoura e mandavam na cidade. Por lá se falava muito nos sertões do Tibagi e nos Campos do Mourão. Antes, meu tio Jozé Luis Pereira, irmão de minha mãe, já andava por aqui”, revela.
Índios - Joaquim Ornellas, aventureiro, guiado pelos índios, casado e pai de 14 filhos, pegou tudo e saiu de São Paulo. “Meu pai era amansador de índios. Tinha muitos toldos (casas de índios) ali na Pitanga. Aqui já não tinha mais bugres (índios mansos), só os de passagem pela estradinha chamada Peaberu, que era o caminho deles”, recorda Quirino. “Eram gente muito boa, mas não se misturava com os brancos. Só não podia tirar eles do sério e nem matar nenhum. Eles eram muito vingativos. Quando menino e rapaz ainda, fui puxador de tropa que ia vender e comprar mercadorias em Guarapuava. Quando passava na Pitanga, cansei de vender coisas pros índios, lá”, registra.
Tropeiro – “O que mais a gente levava nos cargueiros era rapadura, café e arroz limpo. O milho era pra alimentar os cavalos, as mulas de carga ou as porcadas que a gente levava, tocadas a pé daqui até Guarapuava, pelo meio do mato, com os porcos, cachorros e os camaradas que depois a gente pagava um pouco com capado (porco gordo) e outra parte em dinheiro”. Os cargueiros iam nos lombos das mulas. “As pessoas mais jovens não entendem como a gente fazia essas viagens pelos matos, levando taquarada no peito e ramada na cara... se arranhando nos inhapindás (espinhos unha de gato). Eles querem saber como os porcos, os animais de carga e montaria não fugiam”, observa.
Potreiro - “Vou te contar como era. Uma vez por ano a gente fazia roça de milho. Soltava os porcos ali no milharal espigado. Fazia a safra (engorda) de uns quarenta... cinqüenta animais e, depois, a gente tocava eles pelas picadas. Na frente ia o puxador, chamando. Jogava milho debulhado no chão, chamava e a porcada vinha. Atrás iam os camaradas e os cachorros ensinados, cercando e tocando pra frente. A mesma coisa era com a tropa de mulas. Iam soltas, mas tinha o sinoeiro com um badalo no pescoço do cavalo ou da égua 'madrinha'. Os animais seguiam aquele som. Quando o badalo parava de tocar os cargueiros se juntavam em volta do guia. – Agora pergunte por quê os animais não extraviavam?... – Simples: nós cortava as varas do mato e fazia porteiras aqui no começo e outra lááá adiante da estradinha. O cercado se chamava potreiro. A cerca dos lados era o próprio mato... tão fechado que os cavalos e as mulas não embrenhavam. No meio deles a gente jogava as espigas de milho, com palha e tudo. Eles ficavam ali comendo e pastando. Daí acendia um fogo e dormia sossegado. Os cachorros vigiavam das onças. Ladrão de porco e cavalo... bandido... naquele tempo, não tinha. Nem ladrão de galinha... se tinha a gente matava.."... (rindo).
No Campo - “Aqui meu pai requereu muita terra devoluta (sem dono) do Estado, ali por perto do Rio do Campo. Fez uma casa de pinho lascado, prá cá do rio. As terras, ali do Conjunto Capricórnio e do Jardim Araucária, era tudo nossa”, recorda. Plantavam e colhiam alimento na roça. “Tudo era produzido aqui e tirado da terra gorda, muito boa de planta. De fora só comprava sal, farinha de trigo, tecidos, calçados, munição pra caçar e o arriame de montar (a cavalo) e puxar carroça. Os carros de bois, as cangas, as carroças... se fazia aqui mesmo. Tudo de pau e ferragem forjada no fogo e moldada com marreta na bigorna. Sempre aparecia um ferreiro... um carpinteiro bom, no meio dos homens. Tinha gente de todo ofício. Um ajudava o outro na base do dia-trocado... pagava com alimento ou um pouco de dinheiro. A comida e a água valia mais que moeda”, enfatiza Quirino. “Dia-trocado era assim: os dias que um camarada trabalhava na minha propriedade, tantos dias quantos dessem eu trabalhava na casa dele. Entendeu?”... (eu disse que sim, né?).
Pontos - “Já ouviu falar em trempe e guaiaca? – Como eu tava te falando das tropas, tinha os pontos certos de parada daqui até Guarapuava. Parava quando começava escurecer. Só que no meio do mato escurece mais cedo. As árvores tampam o sol quando ele tá caindo (poente). Nesses pontos sempre tinha água por perto onde os animais bebiam e a gente se lavava mal-e-mal. Tirava o suor e o grosso da poeira da viagem”...(risos). “Como já te disse, tinha um cargueiro pra cada coisa. Um só do nosso alimento. A trempe era três pernas de ferro, unida em cima, abria embaixo e um gancho no centro... a gente armava... pendurava o caldeirão de ferro... enchia de comida e tascava fogo debaixo, até cozinhar bem. Café, farinha de milho, feijão, arroz e carne seca, era a base do nosso alimento. Não tinha esse negócio de tomar só um café preto. Todas as refeições valiam por um almoço. Cedo, com café tropeiro, era virado de feijão com farinha de milho. Certo?”, ri satisfeito por ser compreendido.
Cargueiro – “Um cargueiro de mercadoria era três alqueires de colheita. Pesa 120 quilos de produto, transportado por mula, com 60 quilos de cada lado do animal para dar o balanço (equilíbrio). Cavalo não se usava nesse transporte porque é mais fraco e só servia pra montar e puxar carroça, mesmo. Quando fazia muitos cargueiros ou cana de açúcar, aí transportava em carro de bois”, explica.
Mini banco - O Senhor esqueceu da guaiaca....“Esqueci nada. A guaiaca, eu guardo até hoje”. Dona Anália traz e ele mostra uma cinta larga de couro bege, com divisões, fivelinhas e duas fivelas grandes de enfeite nas duas pontas. Tem uma tira de couro com furos marcados e uma fivela menor, por dentro, que é o fecho de segurança. “Aqui (bolsa menor) guardava os níquel (moedas). Aqui (bolsa maior) os documentos, e aqui, ó, é a capa do segurança... meu revólver 38”... (sorri). “A peixeira (faca) ou o punhal (lâmina de aço sem fio, pontiaguda e estreita) ia atravessada nas costas, por dentro da guaiaca, igual bainha”. Agora mostra a parte que vai por cima do cinto que segura a calça. “Veja bem”. Abre a guaiaca em duas, que parece um comprido sanduíche sem recheio. “Nesse meio todo dela se guardava o dinheiro de papel”. Fecha. Aperta os colchetes de pressão. “O dinheiro ia de boca prá baixo e não caia. Carreguei muito dinheiro nessa guaiaca de estimação”, diz orgulhoso, seu Quirino, ao se referir aos “muitos negócios bons” que fazia.
Tábua lascada - “Ganhei muiiito dinheiro. Construí casa boa aqui de tábuas e tabuinhas lascadas.Uma de 88 metros quadrados, de madeira serrada, coberta de telhas no Lajeado (Mamborê). A primeira fiz no machado e no facão ali perto do Rio do Campo, antes de casar. Cortava toras de pinheiro no braço, só de primeira (sem nódulos), nas medidas de três e de um metro de comprimento. Fazia os quadradões de 25 centímetros de largura e lascava as tábuas e as vigas pra fazer as paredes, na grossura de uma polegada. As tabuinhas pra cobrir a casa eram de 95 até 100 centímetros, no máximo. Eu media tudo no palmo (25 cm) e lascava tudo com Facão Miranda (lamina larga e longa, conhecido como facão paraguaio de cortar erva-mate). Lá no Lajeado comprei 82 alqueires de terra legalizada. Fiz uma casa boa, abri várias roças e criava porco. Paguei carpinteiro pra fazer. Casei com a Anália e fomos morar lá. Comprei as madeiras do Dante Salvadori, que tinha serraria ali perto, no Gavião. As telhas veio da Olaria Dal Pascoale, que ficava no Km 23”, saída pra Araruna, recorda seu Quirino.
Família de Quirino em Mambore
Família – Anália e Quirino casaram na residência de Carlina Balles, na localidade conhecida como Barras (Campo Mourão), “era um dos lugares onde o padre parava quando vinha de tempos em tempos de Guarapuava”. Nasceram 11 filhos: Joaquim (casou com Terezinha Martins), Ana Maria (Paulo Kubichek), José - falecido (Marli Goetz), Getúlio (Ivone Krüger), Maria (Valdemar da Silva), João Dornelles (Rosa Maria Sanches), Jair (Marina de Freitas), Albertina (Luiz Carlos Romeira), Jacinto (Giovana Donata), Castorina (Marcos Herardt) e Joel (Neide Cunha). “Temos 37 netos e 25 bisnetos e tá vindo mais uns por aí”, contabiliza seu Quirino, orgulhoso da família que tem.
"Sou devoto de Nossa Senhora de Aparecida", Ao lado, com o sargento amigo, Antonio Soriano, da Força Expedicionária Brasileira - FEB - 1945
O Pala Branca - “Com o temido Pala Branca, eu trocava meio porco todo ano. Uma vez eu matava e outra, ele. Esse homem virou lenda pela fama que tinha de bandido matador. Ele era bom, direito, mas não levava desaforo pra casa. Eu levava a metade do capado pra ele, lá no Pensamento, e no outro ano ele trazia aqui no Campo. Andava sempre armado e vestia um pala (capa de cavaleiro) meio branco, marronzeado pela poeira, Esse pala protegia da chuva e da poeira nas viagens. Estava sempre bem armado e a roupa coberta sempre limpa. O cavalo e o cachorro eram ensinados. No fim, de medo dele, fizeram uma tocaia (emboscada) e mataram ele nos tiros, numa estradinha que ia das Barras pra Juranda, no rumo do Pensamento, onde morava com a família. Ele era nosso amigo, da família, e do pai da Cidália Guimarães (Araújo), que tinha uma venda na Juranda. Quem conhecia bem ele era o seu Bonifácio, pai do professor Ephigênio (José Carneiro), desde lá de Santa Catarina. Parece que de Caçador”, tenta lembrar seu Quirino.
Verdade ou Lenda - “Contavam muitas histórias desse homem bom de tiro. Falavam até que ele sumia no meio da fumaça dos tiroteios, por encanto. Diziam que não morria com os tiros porque tinha o corpo fechado pela reza. Contavam que o cachorro avançava quando percebia a presença de um inimigo ou de alguém que queria matar o Pala Branca (sabe mas não recorda o nome do personagem). O cavalo se fingia de morto ou corria sozinho quando eram perseguidos pelos inimigos. O Pala Branca se escondia no mato. Depois que o perigo passava, dava um assobio e o cavalo vinha. Mas acho que tudo isso era lenda. Eu mesmo, nunca vi nada disso e, nem nunca perguntei pra ele, mas me lembro que não era alto, era de pele clara, usava botas pretas de cano alto, esporas e um chapéu preto, de aba larga.", observa seu Quirino.
Guerras - “Eu vi dois movimentos de guerra por aqui. Até escutava os tiros de canhão lá no Mamborê”. “E é verdade, eu também escutava e ficava com medo de acontecer alguma coisa com a minha piazada!!.. confirma, rapidamente, dona Anália. Quirino diz que testemunhou as passagens de tropas de soldados e guerrilheiros, em 1924 e 1930, pela região de Campo Mourão. A primeira na Revolução Paulista, que tinha o tenente Cabanas no comando, que foi derrotado pelas tropas federais. “Depois passou aqui os comunistas do Carlos Prestes – Coluna Prestes - que queria tomar o governo do Brasil. Logo atrás, com diferença de menos de um dia, vinha o exército do presidente (ditador) Getúlio Vargas, na perseguição. Nessa época quem governava o Paraná era o Interventor Manoel Ribas (Zé do Facão), nomeado pelo Getúlio Dorneles Vargas. Meu pai serviu o exército, nesse tempo, como estafeta (mensageiro) a cavalo. Só viajava no galope prá entregar as cartas com rapidez”, recorda.
Nada – “Até 1940 aqui não tinha quase nada construído. Os moradores eram longe uns dos outros. Era tudo carreador. Nem igreja e escola tinha. A cidade começou uma vilinha (vilarejo) e hoje tá grande e bonita. Mas foi tudo devagar. Eu nasci uns seis anos depois que meu pai veio prá cá.. Estudei o primário em casa, com a professora Maria Ermenegilda Salles, que meu pai contratou para ensinar os filhos. Lá em casa iam estudar também, os filhos dos vizinhos. Me lembro bem dos do João Keche, que fazia divisa com nossa terra”, recorda seu Quirino, que atualmente mora em um sobrado – única propriedade - com sua esposa, ambos aposentados com salário mínimo, estimados, sempre visitados pelos amigos e parentes. “Vi família por família e casa por casa se estabelecer aqui”, registra Quirino.
Cadê as árvores seu moço? - “Lá no Mamborê matei muito tateto (porco do mato), veado e tigres (onças). O tateto era perigoso. Eles andavam em vara (bando) e quando se sentiam acuados, formavam uma roda em volta do cachorro ou da gente e se não subisse num pau ou fugisse, eles estraçalhavam. Tinham presas e dentes grandes que batiam um no outro e por isso eram chamados de queixada. No Mamborê requeri mais de 300 alqueires de terra devoluta e pinhal. Os Sguário entraram lá, com serraria, puseram os jagunços (vigias) e disseram que a terra era deles. Eu fiquei só com um pouco. Depois vendi tudo e voltei pro Campo. Terra naquele tempo, ninguém queria. Só tinham interesse nos pinheiros. Nem prás outras madeiras de lei os serradores ligavam. Em trinta anos acabaram com tudo. Só não serraram os palmitos e palmeiras porque ninguém compra”, critica. “Tinha uma lei na época, que dizia: cada árvore derrubada tem que ser plantada duas sementes (mudas) da mesma espécie. Alguém plantou?”, questiona. "Ir ou vir de Maringá era uma jornada de dias, ou de lama ou de pó, tinha que ter coragem de entrar", concluiu pensativo.
"Nossas Bodas de Ouro foi uma festa linda e Deus de Testemunha"
... Se Anália não quiser ir, eu vou só...
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