25/03/2011

Francisca Teodora Pereira de Campo Mourão


“Nasci e cresci com Campo Mourão. Nunca tive medo de nada. Conheci querosene depois de mocinha e farinha de trigo depois que casei. Nosso rancho não precisava candeeiro quando tinha lua. Fui educada pra trabalhar na roça. Ajudei desbravar o mato, abrir fazendas e até jacaré eu matei. Nunca soube o que era o conforto de uma cidade. Hoje vivo mais na cama, viúva, cercada do carinho da família e vejo Campo Mourão bonita”.

Francisca Teodora Pereira, nasceu em Campo Mourão no dia 21 de abril de 1920. Filha de Maria Francisca de Jesus e de um dos primeiros moradores, o lavrador Inácio Luiz Pereira, irmão do sertanejo Jozé Luiz Pereira. Além de Francisca Teodora, o casal teve mais sete filhos: João Inácio, José Maria, Joaquim Inácio, Manoel Inácio, Benedita Maria, Maria Teodora e Ana Teodora. “Depois que casei, passei a assinar como Teodoro, talvez por erro na certidão de casamento, cometido pelo escrivão Laurindo Borges, que também fez meu registro de nascimento”, tenta explicar dona Francisca, que diz não entender até hoje, “está confusão de Teodora solteira para Teodoro casada. Só sei que Teodora é nome e não sobrenome. Sou legítima Pereira”, sorri.


Meus Pais: Maria Francisca de Jesus e Inácio Luiz Pereira,
desbravadores de Campo Mourão

Inácio Luiz Pereira - “Quando meu pai veio de Ilha Grande (SP) até Guarapuava (PR) em carros-de-bois e cavalos de montaria, a caravana foi chefiada pelo tio Jozé Luis Pereira. Entre os familiares, que moraram por uns tempos em Guarapuava, estava a minha veneranda avó Maria Teodora Pereira, idosa e adoentada, que era cuidada pelo meu pai, ainda solteiro. Nesse tempo meu avô José Luiz Corrêa, tinha falecido e deixou posses paulistas aos herdeiros. Minha avó, viúva, não se acostumou em Guarapuava. Quis retornar para junto dos parentes. Meu pai a levou e já aproveitou resolver a questão da partilha das propriedades”. Inácio Luiz Pereira vendeu a parte que herdou e retornou à Guarapuava, ao mesmo tempo em que seu irmão, Jozé Luis Pereira procurava, incansavelmente, os Campos do Mourão a partir de Pitanga, onde passou a morar numa posse de terra de amigos guarapuavanos”, recorda dona Francisca.

Miguel Luiz Pereira – “Em 1910, quando meu pai veio de Guarapuava pra cá a cavalo, trouxe a mudança no lombo de animais, com uma tropa de cargueiros através de picadas, por onde nem carroça passava. Já moravam aqui os meus tios Jozé Luis e Miguel Luiz Pereira. Em 1903 o tio Jozé entrou na região do Santa Cruz e tio Miguel ali na região da Vila Rio Grande (Barreiro das Antas). A posse de terra ia até o fim do  Lar Paraná. A casa do tio Miguel ficava onde está o Asilo dos Velhinhos. Foi ali que papai parou até construir o primeiro rancho na região da Venda Branca, entre Peabiru e Araruna, que ainda não existiam”. Inácio Luiz Pereira depois mudou na região da Laje Grande (Bica), “onde fez um ranchinho perto de uma mina de água muito boa e da Cachoeira da Anta Brava (Rio do Campo)”. Logo depois comprou uns 120 alqueires de terra, de Luis Silvério, “no lugar chamado Água Fria”, entre o Campo Bandeira e o Barreiro das Frutas. “Eu tinha sete anos”, narra a menina Francisca.

Do nada – Campo Mourão começou do nada, além da terra e da água abençoada por Deus. “Eu mesma não sabia o que era uma cidade porque nasci com Campo Mourão”. Cresceu e aprendeu fazer tudo em casa, desde tirar o alimento da terra e dos animais, fazer roupas de cama, panos de prato e de vestir. “Era tudo na mão”. O milho, o arroz e outros alimentos, como a paçoca de carne de caça ou de animais de criação, muito usadas nas longas viagens, “era tudo socado no pilão, no braço, ou no monjolo movido a água”. De tempos em tempos ia uma caravana à Guarapuava fazer compras para todos que moravam aqui. “Levavam o melhor das colheitas, couros de bois e de animais selvagens curtidos com sal, esticados no sol, bem sequinhos, para vender. Cada família fazia o pedido do que precisava e mandava seus produtos para negociar”. A tropa de cargueiros demorava cerca de um mês para ir e voltar, isso quando não chovia ou não se ficava ilhado entre as enchentes dos rios. “Tudo para mim era normal, porque eu não conhecia o conforto das cidades. Me lembro que aqui um quilo de café em grão custava um mil Reis (1$000) e em Guarapuava eles pagavam até vinte e dois mil Reis (22$000)”, recorda dona Francisca.

Iluminação – Os ranchos de pau-a-pique, cobertos de sapé (capim) ou folhas de palmeiras, eram cheios de frestas, não tinham janelas e só uma entrada. “Nas noites de lua cheia o luar iluminava o rancho por dentro. Nem precisava acender o candeeiro. Era tudo abertinho nas paredes mas só que não chovia dentro e nem entrava onça”... rindo muito. A base das compras que vinha de Guarapuava era sal, peças de tecidos e munição para espingardas. “Conheci lampião e querosene quando já era moça feita. Os ranchos eram iluminados por candeeiros. Nem lamparina tinha”. O candeeiro é uma tigelinha de louça comum ou de barro, onde se coloca banha de porco ou óleo de mamona e um pavio. “Pra acender a gente cochava (torcia) um trapo de pano velho, colocava dentro da tigela com a gordura e depois que ensopava, punha fogo na ponta. Era melhor que lampião. O querosene faz muita fumaça, pretejava tudo. Em volta dos olhos, dos buracos do nariz e nas curvinhas das orelhas, amanheciam tudo preto”, sorri dona Francisca.

Doce Rancho – Os ranchos de paus de árvores ou troncos de palmitos lascados ao meio e cobertos de folhas, eram quase todos iguais. “O fogão se fazia de barro num canto e muitos não tinham nem chapa de ferro em cima; o chão de terra socada ficava bem lisinho; as divisas do rancho e as tarimbas (camas) eram de paus cortados do mato; os colchões se fazia de pano com enchimento de palha de milho rasgada. Tinha acolchoado com penas de galinha ou lã de carneiro; os travesseiros eram cheios de penas, plumas de algodão ou paina do mato, tudo feito e costurado a mão e em casa”. Cada vez que matava uma galinha, “depenava” e guardava-se as penas mais delicadas dentro de um saco, para depois fazer cobertas e travesseiros. “Só cozinhava com banha de porco. O sabão era feito em casa com sobras de animais e cinza. As panelas eram areadas com bucha de palha. As gamelas (bacias) eram farquejadas, feitas de troncos de madeiras, de vários tamanhos, para vários usos. Tinha até gamelão só pra tomar banho”, descreve dona Francisca.

Aprendizado – A família inteira trabalhava nas lides da terra. A tarefa da casa era das filhas. Cada semana ficava uma, enquanto os pais e irmãos trabalhavam nas plantações e cuidavam das criações. “A irmã escalada pela minha mãe atendia os irmãos menores e tinha que fazer tudo no rancho: cozinhar, limpar, lavar e até remendar as roupas. Eu me criei assim. Aprendi fazer tudo que uma mulher precisa saber para cuidar, educar e alimentar bem uma família. Eu ajudava a moer cana e torrar café. Sei encilhar e montar muito bem a cavalo”, diz a prendada Francisca Teodora.

Leitura – “Minha vontade de aprender escrever e fazer contas era grande, mas aqui não existia escola. Quando eu tinha oito anos (1928), estavam construindo nossa casa nova de madeira, com todo conforto e uma varanda grande na Fazenda da Água Fria”. Os pregos vinham em pacotes de papelão grosso e os riscos nas madeiras para fazer os cortes nas medidas, eram traçados com um lápis vermelho, achatado e largo, de grafite quadrado. “Eu alisava bem estes papelões, pegava aquele lápis e nesse material meu pai me ensinou as letras e os números. Ele ditava letras salteadas a fim de me testar. Também mandava eu fazer contas (somar) de cabeça. Essa foi minha escola. Aprendi muito bem, porque eu queria e gostava”, conta dona Francisca.

Mandioca – A mandioca substituiu o trigo por mais de 40 anos na alimentação básica dos desbravadores de Campo Mourão. O trigo começou a ser vendido por aqui depois de 1935, quando Francisco Ferreira Albuquerque tocava um armazém na Laje Grande. “Na cidade que começava em 1940, só se achava farinha de trigo ensacada na Casa Iracema, do Jocelino Medeiros de Araújo”, que depois vendeu o armazém ao seu primo Geremias Cilião de Araújo. “Com o café torrado em casa, moído e coado na hora, o pão era substituído por biscoitos de polvilho (amido extraído da mandioca prensada), sequilho e brevidade assada em uma caçarola de ferro colocada sobre o fogo, com a tampa coberta de brasas. Ficava uma delícia!!.. ensina dona Francisca. “Eu só aprendi fazer pão de trigo depois de quatro anos de casada, com farinha comprada na venda do Alfredo Berger”, revela rindo. Este armazém, que depois foi do Antonio Mascate, ficava perto da Capela São José, num alto, “mais ou menos entre as vilas Guarujá e Carolo”, à margem direita da BR-158 (Campo Mourão-Roncador).

A Imagem – “A estátua de São José, santo padroeiro de Campo Mourão, foi trazida de Guarapuava. Em 1940 foi transferida da Capela para a Igreja Paroquial toda feita de madeira e coberta de taboinhas. A Matriz de São José foi construída pelo padre Aloísio Jacobi com ajuda do povo, em frente da Praça, ao lado da Raia dos Porungos. “Quando a imagem chegou foi conduzida num andor até a primeira Capela, só por homens, todos descalços, pisando a poeira, em meio a uma grande festa”, recorda dona Francisca.


João e Francisca na fazenda em Campo Mourão

João Teodoro de Oliveira, "meu esposo" nasceu em Campo Mourão, dia 1º de abril de 1915. Filho de Almira Lemes da Silva e José Teodoro de Oliveira, lavrador e safrista de porcos. Chegaram a Campo Mourão depois dos irmãos Pereira. Ocuparam lotes de terra e plantavam café à margem direita do Rio do Campo. As propriedades da família Oliveira iam do Barreio das Frutas até a Vila Guarujá. A região ficou conhecida como Campina dos Teodoro. João Teodoro de Oliveira teve oito irmãos: Joaquim, Antonio, Alfeu, Gabriel, Maria Camila, Ana, Flozina e Elezíria. “O Joaquim foi vereador e prefeito substituto. O Antoninho foi prefeito. O Alfeu foi vereador e prefeito de Janiópolis (antigo Pinhalzinho). Todos deram suas contribuições para engrandecer Campo Mourão. Meus sobrinhos, Nelson Teodoro filho do Joaquim; a Maria Enilda e o João Teodoro de Oliveira Sobrinho, filhos do Antoninho e da Zuleika, também foram vereadores e lideres da cidade. O Joãozinho recebeu esse nome em homenagem ao seu tio, meu marido”, revela dona Francisca, com orgulho.

José Teodoro de Oliveira e Almira Lemes da Silva pioneiros de Campo Mourão

Jóquei - João Teodoro de Oliveira, quando menino e rapazinho, era meio franzino. “Foi o melhor jóquei. Também domava cavalos, mulas e burros xucros. Ele montava os melhores cavalos como ninguém. Disputou muitas carreiras na Raia dos Porungos. Vencia quase todas as pencas (corrida de  dupla). Os donos dos cavalos, principalmente o cunhado Coito (Joaquim Coutinho, casado com Flozina) disputavam o meu marido. Durante toda a vida ele contava das carreiras, se empolgava de ter sido o jóquei mais famoso de Campo Mourão”, diz envaidecida dona Francisca. .


Casamento – “Comecei namorar o João (foto) quando tinha 14 anos e casei com 18, na Capela de São José que ficava lá pras bandas da Vila Guarujá,  no dia 26 de fevereiro de 1938. Fomos abençoados pelo padre Aloísio. Depois de sessenta dias, recém casada, fiquei sozinha durante oito meses. É que o Exército convocou o João para o serviço militar obrigatório. Ele fez parte da Cavalaria de Castro e durante esse tempo nunca veio me visitar, por causa da dificuldade de transporte. Já pensou que 
chato?... Fiquei na casa dos meus pais”, reclama a jovem Francisca.

Prole – “Mas, em compensação, depois que ele voltou do quartel, tivemos dez filhos e só uma gêmea morreu”. João Maria (casado com Nair Simões), Maria Cacilda (com Eulálio Muniz), Ana (José Pursino Guilherme), Ernestina (Antonio Inácio Pereira), a gêmea sobrevivente Alice (Elói Schneider), Neuza (Ademir Volpe), Adair José (Sueli Aparecida de Almeida), Neucí (Edivaldo Goudinho Lopes - Futrica) e Angela (com Gilberto da Silva). Dos nove casamentos nasceram 27 netos e 23 bisnetos. “Pooor enquaaaanto!!.. brinca dona Francisca.

Familia de Inácio Luiz Pereira irmão de Jozé Luis Pereira

Jacaré – Essa do jacaré é engraçada. “Eu lavava roupa e apanhava água no Rio Ranchinho, onde nós tinha uma terra de dez alqueires. Um dia vi um jacaré de uns seis palmos, no sol, ali nas pedras. Peguei o revólver, mirei e pááá... o jacaré afundou e sumiu. Errei ou a bala não entrou no couro duro. Contei pro João, ele debochou de mim, riu muito e me tirou o maior sarro: você é ruim de tiro, mulher!!! - No outro dia lá estava o jacaré. O João disse: deixa comigo, vou te mostrar como se atira!! e foi... risos. Atirou. O jacaré ainda deu uma olhadinha pra ele, fez meia volta e sumiu. Ai foi eu que debochei dele”, rindo muito. “Outro dia fui buscar água de balde. O jacaré ali... lagarteando (tomando sol). Busquei minha cartucheira (espingarda 28), mirei no meio dos olhos e, páááá!!.... o jacaré rodou e saiu uns metros pra baixo. Vi que entrou no mato da beira. Na hora do almoço contei pro João que tinha matado o bicho. Ele riu de novo e disse: que matou nada!! – Quando foi depois do almoço, um menino achou o jacaré morto e veio me avisar”, diz vitoriosa. “Tiramos o couro, estaqueamos na parede para secar e depois distribuímos em pedacinhos pros vizinhos, porque diziam que era remédio (afrodisiáco)... - Pra quê??... – Não sei!! Comentei hirônico: - Mas que sabe, sabe!!...risos

Os cães – Os cachorros serviam para proteger. “Faziam parte da família. Comiam primeiro que nós. A gente levantava cedinho e já tratava deles, à vontade, mas só uma vez por dia. Eram alimentados com muita carne de caça, angu de canjica ou de fubá, tudo cozido com ossos sapecados de anta. Da carne da anta se fazia charque igual de vaca”. A boa caçada dependia totalmente dos cães. “A carne do jacaré cortei em pedaços e joguei pra eles. Não sabia que era boa pra gente comer”. Entre a matilha, “todos bem gordos”, cita o Combate, Comandante, Rompe ferro e a cadela Camponesa.

Migrantes – "Abrimos cem alqueires de terra na Fazenda São João. Começamos com café e depois safra de porco. O que não faltava era camarada. Contratamos muitos paus-de-arara que vinham do Nordeste, de qualquer jeito, em cima de caminhões. Os motoristas descarregavam esse povo na cidade e iam simbora buscar mais. Os coitados, com famílias e crianças, tinham que se virar pra sobreviver. Sobrava bóia-fria e mão-de-obra. Nesse tempo tudo que se fazia em casa, fornecia pra essa gente e pros vizinhos. Carne, banha de porco, leite, queijo, o que tivesse de comer, vendia tudo”, registra dona Francisca.

Família de Francisca e João em Campo Mourão

Hoje – ‘Tenho muita saudade dos velhos tempos. Eram poucas famílias, mas muito unidas. Todo mundo se ajudava. Lembro bem das festas da Raia dos Porungos e da Santa Cruz no primeiro domingo do mês de maio, quando o padre vinha uma vez por ano. A cidade cresceu e ficou bonita, mas eu já não posso mais andar por causa da artrose. Fico mais na cama. Me deixa feliz o carinho dos meus filhos, a néééétarada e as amizades que ainda se lembram de me visitar”, concluiu Francisca Teodoro Pereira, aos 82 anos de idade, “sofridos, mas bem vividos!! – frisou com um largo sorriso.

Lar Doce Lar, com o filho Dimas

Peraii... Você já comeu franguinho na panela, ao molho? -Nãoo??
Então marque um dia, me avise e vem almoçar com a gente, sei que vai gostar.
Cosinhar é comigo mesma"... rindo e nos despedimos. 


Wille Bathke Júnior
Campo Mourão

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