12/06/2019

* Deus, o Burro, as Crianças e Eu

   

 
Wille Bathke Jr e Corisco - 1959 - Guarapuava/PR

Eu gostava muito de conversar com Nhô Juca, amigão do meu avô paterno Rodolfo Bathke e amicíssimo da família de Ville Bathke, meu pai.
Quando o visitava ali perto da passagem rasa do Rio do Campo (lava carro) rumo à Campina dos Teodoro, levava-lhe uma garrafa de cachaça da boa e um pacote de erva especial  de chimarrão que ele apreciava por demais e sempre me falava, com as duas mãos estendidas: “não precisava, meu rapaz, masss dá cá... muito agradecido”. Eu ria.
Ele sabia e contava muitas histórias e lendas dos seus superados 90 anos experientes, principalmente durante as rodadas da cuia, quando os compadres se reuniam pela manhã ou à tardinha, em seu humilde rancho pretejado por dentro, tingido pela fumaça do fogo de lenha no chão que ele mantinha aceso. Em compensação suas panelas penduradas na parede, brilhavam igual espelho. Dava para se ver nelas.
"Qual o segredo Nhô Juca?"
"Bucha de palha de milho, areia, cinza e muque, meu rapaz”, revelou. 
Era homem do bem e todos gostavam dele. Me chamava de “meu rapaz’” e quando ele me apresentava a algum amigo novo eu era, pomposamente dito, “o filho do escrivão”.
Eu não tomo chimarrão, mas aprendi a preparar a receita com minha avó Idalina, principalmente a 'manha' para não entupir a bomba de sucção.
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Ville Bathke, Rubens Bathke, Rodolfo e  Idalina Bathke
Com meu pai,  viúvo desde novembro de1949, e meu irmão Rubens (primogênito) viemos de Curitiba morar no distante e desconhecido povoado de puro pó, da lama e do faroeste paranaense em novembro de 1950, a convite do Tio Chico (Francisco Ferreira Albuquerque) que lhe garantiu o Cartório do Registro Civil e a Escrivania do Crime, nomeado através de concurso pelo governador Moisés Lupion. 
Campo Mourão já estava  Comarca desde a sua emancipação (1947).
Entre 1950/51 concluí o primário na escolinha isolada, em Campo Mourão, com a inesquecível professora Eroni Maciel Ribas. De 1952/55 estudei em Curitiba (Internato Paranaense) e Castro (Instituto Cristão). 
Em 1956, com abertura do Ginásio Campo Mourão retornei à família e à cidade que começava a ser impulsionada pela força econômica do café e da madeira, com intenso tráfego de caminhões, famílias e aventureiros em busca de terra. 
Foram tempos difíceis enquanto imperou a violência nas disputas de quinhões devolutos do sertão mourãoense, a chumbo, ferro, fogo e muitas mortes ocorridas nos entreveros entre posseiros e jagunços pagos por grileiros e coronéis, simplesmente para tomar a terra onde houvesse alguma demarcação, requerimento de posse ou benfeitoria. O que menos tinha valor era a vida dessas pessoas.

Algumas vezes, no mato, fui confundido por alguns posseiros que temiam os jagunços. Eu logo me explicava e provava que era de paz. 
Nas minhas cavalgadas à procura de crianças fora do censo, vi vários ranchos queimados, plantações destruídas, criações mortas por jagunços e soube que  ali moravam famílias inteiras, homens, mulheres e crianças vítimas das  chacinas encomendadas. Muitos corpos nem eram enterrados. Os bandidos, retalhavam, jogavam os pedaços no  mato ou no rio para serem devorados pelos bichos e peixes, abundantes nesse tempo.
Não morrer ninguém no dia era novidade. Normal era, em média, cinco assassinatos, diariamente.
  
Capitão Ary Rodolpho Carracho Horne e Sd Bathke/348

Em 1959/60 fui convocado pelo serviço militar e  em janeiro de 1960 dei baixa do Exército Brasileiro, na qualidade de artilheiro de elite (sniper), soldado reservista de 1ª categoria do Iº Esquadrão Independente de Cavalaria, antigo Fortim Atalaia, em Guarapuava/PR, sob comando do Cap. Ary Rodolpho Carracho Horne, do qual muito me orgulho.
Fortim Atalaia - Guarapuava/PR
Em 1960 me fixei de vez em Campo Mourão. Parou a correria de idas, férias e vindas, enquanto estudava fora. Nesse período do vai e vem perdi um tanto do trem da história. Me atualizava ao ler os processos criminais no Fórum administrado pelo meu pai e meu irmão Rubens promovido a Oficial Maior enquanto Maria Coledan foi nomeada Escrevente Juramentada, depois ela assumiu, e é titular do Cartório até hoje. 
Por consideração mantém  fotos de Ville Bathke e João Pacheco Gomes (segundo escrivão) na parede esquerda, logo na entrada do Registro Civil de Campo Mourão, na Av. Manoel Mendes de Camargo. 
Quando voltei, emprego aqui era coisa rara e eu queria trabalhar. 
Fui monitor de Educação Física no Ginásio Campo Mourão (a convite) por dois anos, mas precisava ter emprego fixo, meu dinheiro e sobreviver. Me dava vergonha depender. Nem dinheiro para a pipoca e o Cine Mourão eu tinha.
Foi quando meu pai, nesse mesmo ano, me propôs percorrer a mata bruta e o sertão em busca de casais não casados e crianças não registradas. Era tempo de censo demográfico no Brasil.
Topei. Fomos a Piquirivaí e ele comprou um burro branco meio passado, de um amigo. Voltou no Ford  e eu, em pelo no burro, cavalgando apenas com um cabresto. O animal era baldoso, passarinheiro e lento, mas o dominei com a experiência adquirida no quartel. 
A rodovia BR-369 estava sendo demarcada e vim pela sua margem direita sobre puro macadame. Demorei quase meio dia de Piquirivaí aqui, debaixo de um sol quente demais, que me valeu uma sinusite, que depois de anos, como por milagre, desapareceu sozinha.

Comprei os arreios na selaria do seu Modesto Três e, quando estava em casa soltava o burrão no pasto alugado do seu Joaquim Teodoro de Oliveira, três quadras abaixo da nossa casa da Av. José Custódio de Oliveira. Morávamos em frente às residências do seu George Jort e do seu Aldo Casali.
Por três vezes o danado do burro fugiu e, não sei como, voltava onde o compramos. Também não sei como eu o encontrava. Instinto ou intuição, talvez. Eu ia a pé a cata dele e voltava montado, em pelo.
Comecei a viajar para cumprir a missão que o pai me confiou. Segui suas ordens à risca. Levava farofa de carne, broa  caseira, latas de sardinhas nos alforges, cantil, dois pelegos, facão, laço de corda, capa de chuva e revólver 38 - Colt Militar preto, cano longo; canetas, lápis e blocos de anotações.
Me programava assim: durante 15 dias ia mata a dentro e 15 dias mata a fora. Depois retornava pelos mesmos trechos a entregar as certidões datilografadas e receber pelo trabalho pré combinado. 
 
Era baratinho e quando o pai da família não podia pagar, eu não cobrava, daí o meu pai descontava do meu acerto e tudo bem. Jamais reclamei, só pedia aumento. Eu ganhava a ninharia de 10 por cento do líquido. Mas pai é pai e sempre o respeitei, apesar de pão duro.
Os pontos de referências, a partir dos quais  tomava rumo, eram as fazendas: Floresta (a esquerda da BR-458) entre a Fazenda Onça Parda e a entrada para Corumbatai do Sul; a do Napoleão Cilião de Araújo (Caboclo), a do Luiz Alves ou a ‘venda’  a beira da estrada, no trevo da entrada onde hoje vendem bolinho de carne, antes de Luiziana, região que conheci por Muquilão. 
Sempre que passo por ali, paro, como um bolinho, tomo uma sodinha, escuto uns causos que o casal conta (e são muitos). Satisfeito, pago e sigo viagem.
Meus guias eram as famílias raleadas que encontrava pelas picadas e caminhos batidos, bem distantes umas das outras, sempre rumo ao desconhecido. Estas me indicavam onde ficava a próxima e os nomes dos moradores e eu tocava adiante até encontra-los e, dessa, eu partia para outra... outra... e outra...
Duas vezes fui recebido a tiros. Gritei que era de paz de mãos ao alto mostrando que estava desarmado e estava a serviço da justiça. Na realidade era credenciado pelo delegado e pelo juiz da Comarca. 
Mostrava os documentos e depois ficávamos amigos. Ao apear eles viam o revolvão na minha cinta. Se olhavam e não comentavam nada. Creio que pensavam: Atiramos nele de garrucha. Vai que ele atira na gente com esse canhão//.
Meu limite básico era Pitanga, nada além da divisa com Campo Mourão. Só percorria mesmo território mourãoense. Evitava confusão com outros cartorários, delegados e juízes de direito. 
Nestas casas humildes passaram a me oferecer boia caipira e cafezinho preto a tal ponto que eu nem levava mais comida de casa. Eu dava lata de sardinhas a eles e bala (doce) às crianças. É a maneira que encontrei de agradecer pela abençoada comida. A pi -azadinha me chama de thio e quando me via, corria me encontrar. Até os cachorros ficaram meus 'amigos'. Me reconheciam latindo de longe. Isso tudo me aliviava porque era sinal que estava próximo de uma família amiga e longe dos perigos da mata.
Onde eu mais pernoitava era na casa da sede da fazenda do seu Napoleão (irmão do seu Geremias Cilião). Dormia na tulha de café ou em um canto da varanda da residência que eu apelidei de Hhotel Mmil Eestrelas. Adormecia contemplando o céu, a lua, e elas olhando para mim. 
  
Pelegos de carneiros
A sela dura era meu travesseiro, um pelego era forro no chão, outro me cobria ou quando estava frio, mais a capa gaúcha de feltro grosso por cima. 
O seu Napoleão, muy amigo, me cobrava um dia de tarefa pelo pernoite. O homem morava na cidade, na mesma avenida, meia quadra adiante de nós e se dizia amigo do meu pai. Imagino como seria se não fosse.
  
Eu mais o filho dele, meu colega de  juventude, João Cilião carpíamos eitos enormes entre as leiras dos pés de café, das 6 hs da manhã às 18 hs, com direito a comer um virado de feijão com farinha de milho e uma caneca de café puro adoçado com melado de cana, antes  de dormir. Quando a gororoba caia no estomago a barriga roncava alto. 
Durante a capina era só pão com mortadela e água da mina,  que levávamos em moringa de barro. Hoje, o nome que dão a isso é: trabalho escravo.
Dia seguinte cedinho, tratava do burro, encilhava, montava e seguia. Quando dava de  anoitecer no meio do mato (escurece rápido), acampava, acendia fogueira de madeira delgada meio verde (demora para queimar toda), amarrava o burro na soga, jogava umas espigas de milho com palha para ele comer; subia e me amarrava na forquilha de árvore alta e grossa, assim evitava de onça me pegar. Mas o burro avisava e ela não gosta de fogo. Nunca apareceu ou pelo menos nunca vi, vez ou outra escutava alguns urros bem longe de onde eu estava. 
O pouco que dormia, o revólver ficava no colo, bem na mão direita, sempre carregado (seis balas). De prontidão. Não era medo, era prevenção.
Tanto era que certa madrugada acordei, escutei o burro assustado, bufando e fazendo tropel estranho. 
O dia estava meia luz,  quase clareando. A passarada na maior algazarra. Olhei para baixo: um homem, agachadinho, estava puxando minha montaria pela corda e se mandando de fininho. Disparei dois tiros em direção das pernas dele; errei e gritei: vou te matar, seu ladrão @#@! xinguei.  Foi uma corrida só. Largou a corda e escafedeu-se.
Uma bela tarde, lembro-me bem, passei por uma pequena montanha de cristal de roxa (quartzo), cor de rosa escura, tudo exposto e brilhando, muito linda, entre Barbosa Ferraz e Fênix. Passei por ela, não vi trilha e nem picada. Toquei ribanceira abaixo e me deparei com o leito de um riacho estreito e raso. O burro bebeu umas goladas barulhentas e seguiu chafurdando água acima. Silêncio total. Relaxei e dormi montado.  De repente senti um baque no peito, abaixo do queixo, e acordei de costas, caído na água limpinha, chapéu boiando e eu olhando para o céu, abestado, sem entender nada. 
Não há de ver que bati em um baita tronco de árvore apodrecido, coberto de musgo verde, caído e sustentado pelos dois barrancos laterais. Pareceu-me ser uma antiga pinguela, abandonada há muitos anos. 
Eu ali estatelado e o danado do burro não parou. Tive que correr rápido, as botas cheias de água, roupa ensopada, mas por sorte o alcancei, senão ia ficar a pé naquele fim de mundo. Montei e seguimos riacho acima, até que vi outro arremedo de caminho. Era muito estreito e tive que desbastar um pouco, com o facão. Mais adiante alargou e fomos tranquilos, mais rápidos. Acelerei o burrão com as esporas.
Nessas andanças - a procura de crianças não registradas e casais não casados - levei outros sustos também - tudo em nome do censo do IBGE no Paraná e das baldas do amigo burro. 
Vez ou outra, trotando ou no passo,  do nada, no repente, o burro dava uma negaceada. Firmava as patas traseiras na terra, empinava as dianteiras e saia rápido de banda, pra lá e pra cá. Parecia ensaio de rodeio de peão. Nunca me derrubou assim, mas quase. 
Isso que era o tal burro passarinheiro, que falavam. Qualquer sombra que se mexia ou ave que passava, ele dava uma de assustado, igual besta mesmo.
Sei que o burro branco e eu demos duro por quase um ano. Foram cerca de 500 assentos, do final de janeiro ao início de dezembro, de crianças e adultos. Casamentos foram poucos, uns 100. Fui padrinho de vários, com maior prazer.
Em meados de 1961, mulher grávida, ofereceram-me o primeiro emprego efetivo. Foi na Madeiras Slompinho Ltda dos irmãos Romildo e Línio Slompo, na Rua das Indústrias, durante abertura do recém loteado Jardim Lar Paraná destinado a ser polo industrial idealizado pelo seu Paulino Joaquim Slomp. 
Os patrões iam de bicicleta – no início - e eu a pé, do centro até lá. Mas logo prosperaram e  tinham automóvel e eu, bicicleta (Monark). Fui o guarda-livro faz tudo. Ajudava na serraria e a carregar caminhão também, quando era preciso.
Casado, mulher grávida, me cederam moradia na colônia e ali nasceram meus dois primeiros filhos. Desde então não parei mais de trabalhar. A Vida não deixa, a necessidade exige luta!!
Nunca gostei de andar armado. Meu avô materno, Fernando Vera, que foi um bravo militar revolucionário republicano, nos dizia: "se puxar, atire!!" 
Nunca precisei matar para sobreviver, só tentei quando tentaram me roubar o burrão. 
O revolver das andanças virou relíquia, até que um dia, já pelos anos 70 apareceu um motorista transportador de madeira que disse precisar de uma arma porque fora assaltado duas vezes. Lhe ofereci o Três oitão e ele me propôs a troca por um terreno. Aceitei, registrei o imóvel, seu Joaquim e dona Isabel assinaram a transferência no Cartório da Dona Julia (1º Ofício), construí e moro até hoje na Rua Coelho Junior, no Jardim Flórida, loteado pela Família Teodoro. Interessante que o motorista não sabia o valor do lote e eu não sabia o do revólver. Foi na orelha.
Se passaram uns dois meses ele apareceu para carregar e disse que tinham roubado a arma dele, mas o terreno não (respondi). Resido nele há mais de 40 anos. É meu santuário. Tem de tudo um pouco, tem Deus e muita Paz, gostoso de morar.

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Observou que, de inicio, citei Nhô Juca?
Contei a história dos registros a ele.
Motivos tais porque ele sempre me pedia para narrar algo a meu respeito ou da Família Bathke e eu lhe solicitava um dos tantos contos dele.
Durante o tempo que corri os matos, nunca deixei de o visitar e levar os presentinhos que ele gostava.
Quando eu ia chegando, me via e logo me intimava:
"Mas me conta aí, meu rapaz, e as novidades?! 
"Perai Nhô Juca, deixa me lembrar !! 
Tá!  Mas trouxe o mate e a pinga?

Entreguei a sacolinha, entramos no rancho e... dê-lhe papo.
Ele mate, eu cafezinho.
O chimarrão preparei eu, o café ele, como sempre.

Vai um aí ?? Eu que fiz!!


Galeria de Fotos
 
Wille Bathke Junior - 1960:
"O rumo era sempre desconhecido"

Burro branco meu parceiro passarinheiro

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Serra Tissot em Serraria Pica-Pau Campo Mourão

 
Cap, Ary Rodolpho Carracho Horne - Comdt
 
 
Formatura Ordem do Dia - 1959 - Guarapuava

Sd Bathke/384 - Casa da Guarda - 1959

Fortim Atalaia - Início de Guarapuava

   

Travessia do Rio Ivaí - Marcha da Cavalaria pelo Paraná

  
Quando parei seu Antonio comprou


  
Wille Bathke Jr e o cavalo Corisco - 1959
I Esquadrão Independente de Cavalaria - Guarapuava/PR

 
Colt 38 - Militar

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